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entrelaçada à empatia, mediação de leitura, educação, brincar, sustentabilidade e cultura de paz.

Marcelo, Marmelo, Martelo, Ruth Rocha e a língua lúdica


Vencendo os obstáculos da alfabetização e desenvolvendo o gosto pela leitura


Sabe aqueles personagens que de tão reais e divertidos “parecem aquelas crianças que a gente gostaria que morassem no andar de cima, na casa do outro lado, na rua em frente: crianças que a gente gostaria que fossem os melhores amigos de nossos filhos ou sobrinhas, ou então... que fossem nossos alunos!”[1] É assim que a professora doutora em Teoria Literária Marisa Lajolo descreve uma das mais famosas criações da escritora Ruth Rocha: o personagem que há praticamente 40 anos encanta leitores e ouvintes com suas perguntas e invencionices.

“Marcelo vivia fazendo perguntas a todo mundo:
— Papai, por que é que a chuva cai? 
— Mamãe, por que é que o mar não derrama?
 — Vovó, por que é que o cachorro tem quatro pernas? As pessoas grandes às vezes respondiam. Às vezes, não sabiam como responder. 
— Ah, Marcelo, sei lá... 

Uma vez, Marcelo cismou com o nome das coisas:
 — Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo? 
— Ora, Marcelo foi o nome que eu e seu pai escolhemos.
 — E por que é que não escolheram martelo? 
— Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta... 
— Por que é que não escolheram marmelo? 
— Porque marmelo é nome de fruta, menino! 
— E a fruta não podia chamar Marcelo, e eu chamar marmelo?”

O leitor mirim pode pensar que está sozinho e que não é entendido pelos adultos que usam a língua sem se questionar sobre ela. “Por que eu tenho que aprender isso? Será que só eu penso que o alfabeto não faz sentido? As coisas já não nascem com um nome? Já não sei falar?” – Estas são perguntas de quem está sendo iniciado na leitura. É estanho descobrir que cada língua nomeia as coisas com determinados sons e letras (no caso ocidental, aleatoriamente, visto que os nossos grafismos alfabéticos não tem significado em si a não ser o de representar os sons) e que há uma distinção entre a coisa e sua representação (a palavra).

Em determinado momento da evolução linguística, a criança não distingue coisa e palavra. É desse modo que, conforme mostrou Piaget, (...) uma criança, em determinada etapa, não concebe que as coisas possam ter um nome diferente daquele que têm. É assim que, confundindo coisa e nome, a criança supõe que não poderia dormir de noite se a lua se chamasse sol.

Do mesmo modo, não concebe separar pessoa e nome. Seu irmão não seria a mesma pessoa se, em lugar de Carlos, se chamasse João. A essa indistinção se dá o nome de realismo nominal, período em que o convencionalismo da linguagem não é apreendido pela criança.

(...) O ingresso no mundo da escrita ocorre mediante um exercício de abstração em que coisa e palavra estão distantes, e onde não há correspondência entre a representação visual e a espontaneidade da fala.

Para alcançar essa abstração, requer-se da criança um grande esforço intelectivo. De modo que o salto ao mundo alfabético processa certa forma de ruptura na experiência linguística. Com o corte, surge uma lacuna que pode ser neutralizada por meio do contato com um modo de expressão que permita espontaneidade e o ludismo e que esteja afim com a afetividade do falante.[2]

O personagem Marcelo ajuda o leitor a perceber que ele não está sozinho em seus questionamentos, espontaneidade, ludismo. O menino criado por Ruth Rocha ajuda o leitor a desenvolver uma relação prazerosa com a língua, explorando forma e conteúdo, seus meios e fins:

“Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar assim."

Ao criar uma nova língua, Marcelo percebe que há momentos em que os meios para se comunicar algo a alguém podem ser lúdicos, ambíguos, inventivos.

Porém, há casos em que a finalidade de se comunicar algo (e se fazer entender diante de alguém) deve ser cumprida, senão situações trágicas podem acontecer.

Marcelo, Marmelo, Martelo - Ilustração de Mariana Massarani
Depois de uma situação de perigo eminente vivida no livro (“Marcelo entrou em casa correndo: — Papai, papai, embrasou a moradeira do Latildo!
 — O quê, menino? Não estou entendendo nada!”), por um lado, o menino aprende que precisa ser menos lúdico e mais assertivo em certos comunicados, e por outro lado, os pais percebem que podem ser mais lúdicos e compreensivos ao tentar se comunicar com o filho. “O pai e a mãe do Marcelo não aprenderam a falar como ele, mas fazem força pra entender o que ele fala.”

Para Ligia Cademartori, uma parte fundamental do desenvolvimento linguístico constitui a manipulação lúdica dos sons da língua pela criança, criando inclusive a fruição do sonoro independentemente do significado. A autora afirma que o ludismo sonoro deve deixar de ser visto como uma inconsequência infantil, à qual se pode ser indiferente, para ser visto como parte específica da habilidade da espécie para aprender língua.

“ Nos jogos verbais, a criança desloca as unidades linguísticas da relativa transparência de seu uso na comunicação interpessoal, para a opacidade que ganha o material linguístico, quando é tratado como brinquedo.

(...) Prevalece o prazer da autoexpressão e da liberdade de composição. (...)

Marcelo, Marmelo, Martelo
- Ilustração de Mariana Massarani
 
A atitude adulta mais costumeira em relação à língua é vê-la apenas como instrumento de comunicação, sem sensibilidade para perceber elementos linguísticos que, a rigor, não sejam instrumentais. Salvo os poetas, e pessoas com educação literária, a maior parte dos adultos parece impedida de usufruir amplamente o prazer lúdico verbal. A relação lúdica com a língua exerce função importante na introdução da criança no universo da escrita. Facilita o processo estimulá-la a centrar a atenção nos meios, ou seja, nas formas da língua, em lugar de focar-se apenas nos fins, o que ocorre quando o interesse é essencialmente a comunicação.”

Para a Prof. Dr. Nelly Novaes Coelho, criadora do Departamento de Literatura Infantil e Juvenil da USP, dois dos valores desta literatura[3] são: estimular e enriquecer a imaginação infantil e ativar a potencialidade criadora – natural em todo o ser humano, mas que muitas vezes permanece latente durante toda a existência por falta de estímulo.

Estímulo criador é o que não falta neste livro deste menino (re)inventor da palavra! “Aquilo que na história de Marcelo e, em diferentes formatações, na de seus companheiros de livro, são brincadeiras de criança – dar nome às coisas – reproduz em nível mais profundo a ancestral experiência humana, que remonta à narração bíblica, que conta de quando o primeiro homem põe nome às demais criaturas...

...o que sela a universalidade e a atemporalidade deste livro de Ruth Rocha.”[4]

Podemos concluir que a busca de pais e educadores por obras escritas com ludicidade e desafios para entreter e ampliar os conhecimentos do leitor nunca é uma busca em vão - e muito menos monótona. Apresentar o mundo literário aos leitores iniciantes pode descortinar novos tons e meios de ver a vida até mesmo ao leitor experiente. Porque na vida, assim como na literatura, há inúmeros Marcelos-Marmelo-Martelo por aí, com infinitos outros nomes, loucos para serem ouvidos e - quem sabe até, se ludicamente ouvidos - entendidos.


Dicas de leitura (quatro obras em que aparece o ludismo linguístico e a criação literária é estimulada):

- Marcelo Marmelo Martelo de Ruth Rocha – Ed. Moderna

- O batalhão de letras de Mario Quintana – Ed. Globo (indisponível na editora, somente usados) http://compare.buscape.com.br/o-batalhao-das-letras-mario-quintana-8525046337.html

- A Revolta das palavras de José Paulo Paes – Ed. Cia das Letras


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Textos teóricos citados:



[1] LAJOLO, Marisa - "De histórias isoladas a um livro de histórias" in Rocha, Ruth – Marcelo, Marmelo, Martelo / Ruth Rocha; ilustrações de Mariana Massarani, 1ª edição totalmente reformulada - São Paulo: Moderna, 2011, p. 64.
[2] CADEMARTORI, Ligia – O que é literatura infantil / Ligia Cadermatori – 2ed. – São Paulo: Brasiliense, 2010 (Coleção Primeiros Passos 163), p. 64.
[3] COELHO, Nelly Novaes – Literatura Infantil: Teoria, análise, didática / Nelly Novaes Coelho – 1ª ed. São Paulo: Moderna, 2000, p. 198.
[4] LAJOLO, Marisa - "De histórias isoladas a um livro de histórias" in Rocha, Ruth – Marcelo, Marmelo, Martelo / Ruth Rocha; ilustrações de Mariana Massarani, 1ª edição totalmente reformulada - São Paulo: Moderna, 2011, p. 68-69.

2 comentários:

Carla disse...

Fabio, incrível! Peguei neste livro e o reli a semana passada! E recordei as brincadeiras que fazia com meus filhos e os nomes. Meu filho se chama Marcelo e sua avó lia sempre este livro para ele. Imaginava o que lhe passava pela cabeça e porque seu fascínio pela história... Este artigo elucidou-me e estimulou-me a saber ainda mais! Bjs no coração!

Fabio Lisboa disse...

Oi Carla, obrigado pelo relato verídico do impacto da literatura em seu filho Marcelo! Mas não me admira o fascínio dele pois ter uma avó contando a história e ainda de um livro com o nosso nome, é pra querer ouvir mil vezes mesmo, né...

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