Aqui você encontra a arte de contar histórias (storytelling)
entrelaçada à empatia, mediação de leitura, educação, brincar, sustentabilidade e cultura de paz.

Germinar uma Cidade Leitora

 

Tudo começa numa mediação de leitura para bebês, contação de histórias para crianças e adultos, formação de professores e no encantamento da comunidade escolar - e, certamente, num berço ancestral

por Fabio Lisboa

 

Felix, a cidade leitora

Há um incerto tempo, num certo lugar, não muito perto nem muito longe daqui, havia uma cidade, chamada Felix, a cidade leitora, onde (se dizia que) só moravam pessoas felizes. Ou ao menos eram felizes enquanto liam ou trocavam histórias e como faziam isso sempre estavam quase sempre felizes mesmo, como você, leitor(a). Ali perto, um sábio ancião guardava a via de acesso ao local. Ele ficava na encruzilhada que separava os caminhos de entrada, de um lado, para a extraordinária cidade e, de outro, para um município vizinho, comum, como outro qualquer.

 

Havia muita gente indo e vindo querendo conhecer e mesmo morar na fabulosa cidade, mas poucos conseguiam pois sempre paravam no trevo e perguntavam ao homem qual o caminho certo para se chegar à Felix. Eis que naquele dia (e se não houvesse esse dia como eu poderia contar a você, leitor/a) - apesar de ser um dia como tantos outros - chega um viajante ansioso que só para, momentaneamente, a sua apressada caminhada, na encruzilhada, entre um caminho florido e outro pedregoso, e pergunta ao ancião:

 

-       Ei, velho, este caminho florido leva a Felix, a tal cidade onde vivem pessoas felizes?

-       Me diga antes, como são as pessoas de onde você vem?

-       Ah, da cidade de onde venho só há pessoas mesquinhas, ninguém liga pra leitura ou pros outros, aquele bando de egoístas ignorantes! Por isso busco um lugar diferente!

-       Pois por esta estrada você só vai encontrar pessoas como estas da sua cidade - disse o ancião, apontando para a via florida.


O aspirante a residente em Felix, obviamente, preferiu pegar o outro caminho, pedregoso, que levava ao município vizinho. Um tempo depois, chega uma viajante, esta mais tranquilo e respeitosa que o primeiro, para e pergunta ao ancião na encruzilhada:

 

-       Por favor, meu senhor, poderia me dizer se este caminho florido leva a Felix, a cidade onde vivem pessoas leitoras e felizes?

-       Me diga antes, por favor, como são as pessoas de onde você vem?

-       Ah, da cidade de onde venho a maioria das pessoas é boa gente, há muitos leitores e com a troca de livros e de histórias de boca a maioria vive em paz e as pessoas cuidam e se importam umas com as outras. Fui muito feliz lá e busco um lugar parecido para ser mais feliz ainda.

-       Pois por este caminho você só vai encontrar pessoas como estas da sua cidade - disse o ancião, apontando para o caminho florido, que a conduziria a uma nova história feliz por lá.

 

E é claro que naquele dia - como você, se estivesse lá - a viajante leitora pegou o caminho florido rumo a Felix, a cidade leitora e feliz, a cidade que é o que somos.

 

O berço da humanidade não é uma cidade, uma aldeia ou um continente. O nosso primeiro e palpável berço humano é o útero materno. É lá que, desde sempre, fomos ensinados a sermos humanos, lá sentimos o amor se materializando, embalados de cuidados e carinho em ritmos ternos ao sustentar a vida, na mais maravilhosa cadeira de balanço (por 9 meses), ao sermos alimentados (inclusive de afeto), ao falarem conosco, cantarem, contarem histórias e, de forma mais ou menos estruturada, estas são as primeiras narrativas que chegam até nós, de bebês (pré-natal em diante) a crianças, que um dia virarão jovens e adultos dando continuidade à nossa maravilhosa história humana.

 

Eis que estas primeiras narrativas - lidas ou contadas “de boca” de forma mais contínua e cadenciada ou cheias de surpresas e reviravoltas - conduzem a uma inebriante volta aos ritmos uterinos que o bebê do lado de fora e crianças por aí afora, se deleitam em ouvir, relembrar ou descobrir. Ainda mais se a contação for regada a leite materno e com a história estreitando os vínculos ao ser contada por vozes familiares (mas não só). Porque - estando o bebê (ou o ouvinte que for) devidamente alimentado, limpo, descansado, sem frio ou calor, ou seja, minimamente em paz - a palavra contada tem esse poder encantatório (quase sobre-humano) sobre os humanos. 

 

Logo, do ventre do mundo, ao usarmos os olhos da imaginação para ver onde começa a semeadura, vislumbramos o nosso primordial e impalpável ninho: o berço da humanidade são as histórias.

 

Um berço que nos ensina, nos sustenta, nos conecta, cria pontes e quebra muros aparentemente intransponíveis, nem que sejam feitos por mãos outrora fechadas que, ao se conhecerem de fato, se abrem para um aperto de mão. As narrativas nos abraçam e dão a segurança de um berço dentro do qual temos a esperança de - e a liberdade para - ser ninados e sonhar, fabular e confabular, semear e colher, construir castelos de areia ou cidades inteiras, abrir portais e portas e até fendas em muros reais ou imaginários, ainda que feitos por dedos, que se abrem como cortina... e assim, começa o espetáculo:

 

Bem-vindos a uma narrativa antiquíssima que abre as portas de uma cidade dos sonhos, que começa com o suspense da muralha de dedos fechados que, magicamente, se abre - num jogo de "faz de conta" - desvelando o protagonista na história da criação afetiva do bebê: "Achooou!!!" - diz a mamãe, o pai, o vovô, a vovó, os tios, primos brincalhões, ou a primeira professora. E o bebê se encontra em si mesmo, se vê sendo amado pelo outro e sente brotar o apego seguro e a empatia a partir de um dos primeiros conflitos que elabora entre a momentânea ausência (verdadeiro desaparecimento) da protagonista e, logo a seguir, com a resolução do conflito, com o fabuloso reaparecimento da pessoa amada - como uma boa e bem contada história, a qual o bebê e a criança, sorrindo, querem que lhes seja repetida (se possível, infinitas vezes)... E quem não quer resolver de forma indolor - e rapidamente - um conflito? Quem não quer descobrir a vida por meio do “era uma vez…” e, de fato, conhecer e reencontrar o amor sempre? E assim, quem não quer - com as sementinhas da leitura, da oralidade, da escuta, do diálogo e do amor regadas por boas histórias, no País da infância (ou das Maravilhas), numa Cidade Leitora, numa verdadeira Utopia, como nos contos de fada - viver feliz para sempre?

 

No entanto, é bom termos em mente - como diria a minha avó que - só devaneio "não enche barriga"... só abstração sem ação, só redes sociais sem sociabilizar em rede no mundo real, só ideias e sementes sem serem plantadas em solo receptivo, só livros sem a prática de leitura, seria como ir num restaurante chique mas só ficar olhando, ou pior, comer o cardápio no lugar da refeição. Não nos satisfaz. Ao menos não com o prazer, a saúde, plenitude, fertilidade, transformação, florescimento, durabilidade e a repercussão de uma boa leitura, de uma história bem contada, de um banquete literário, de uma experiência bem vivida e vívida na memória e que talvez seja pra sempre relembrada, (re)imaginada e mesmo vivificada no mundo real. É dessas que queremos contar e fazer florescer. Em você e com você! Porque tudo começa conosco e no lugar onde estamos. Uma cidade leitora germinante começa em nós. E mais germinante ainda se estivermos na escola.

 

É hora de germinarmos uma Cidade Leitora e a base começa no chão da escola

 

Escuta só a manobra e a tática (sementes nas mentes e mãos à obra): O solo fértil são as ideias postas em prática!

 

Os tijolos-semente que se erguem são as palavras e criações que vão se formando conforme o/a professor/a as usa numa leitura no dia-a-dia e quiçá também um convidado especial como um contador de histórias que usa as palavras de forma memorável numa contação ou mediação de leitura e, logo, os ouvintes estão usando cada vez mais e melhor estes tijolinhos que são as palavras e, com elas, juntos, concretizamos utopias e - como no conto tradicional, na busca pelo lugar onde os habitantes são, de fato, felizes - fazemos uma cidade ser quem somos.

 

Assim, as sementes-palavra germinadoras de sonhos se fortificam (e multiplicam) quando o/a leitor(a) - professor(a), alunos e toda a comunidade escolar - se encantam e juntam os tijolos-palavra e outros elementos materiais (e impalpáveis) construindo, dentro (e fora) da escola: lares onde se cultiva uma cultura de paz, hortas comunitárias alimentando utopias e realizações, bairros e ecovilas arborizados e pulsantes de vida, vias de acesso a todos os cantos (e contos) interconectando a todos os seres como as artérias de um enorme coração de mãe, metrôs velozes desenterrando memórias profundas e as interligando a um futuro promissor e altas montanhas ou edificações fazendo enxergar mais longe, pontes entre mundos, belos jardins (inclusive os da infância) e parques públicos com bosques (e até florestas encantadas) em plena cidade. Enfim, a frutífera palavra das histórias semeando lugares visíveis e invisíveis onde a freiriana “leitura de mundo que precede a leitura da palavra” acontece de forma cada vez mais concomitante, numa leitura vibrante onde a vida alimenta a palavra e a palavra alimenta a vida.

 

Fortalecemos, assim, o florescimento de uma cidade sustentável e verdejante - inclusive de esperança. Que sustenta e faz florescer a Palavra-Semente, a ciência, a consciência e a humanidade, incluindo o conhecimento ancestral e a prática dos povos originários com a natureza. Inclusive com a natureza humana. E o aprendizado compartilhado e vivido em roda, por meio da memória, das histórias e da própria vida.

 

Uma vida em comunidade (inclusive a escolar) que nos faz criar raízes, descobrir quem somos, de onde viemos, enxergando o potencial que temos de desabrochar e vir a ser e, sobretudo, o poder das sementes de esperança que vamos deixar e que podem vir a nascer com a nossa essência mais pura e sagrada.

 

Afinal, como Eduardo Galeano escreve:

“Um cientista me disse que somos feitos de átomos. Mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias.”

 

Já para germinar uma cidade leitora, um contador de histórias, junto aos ouvintes e narradores-educadores de ouvidos abertos (e generosos), sussurram:

 

“Não é preciso ir atrás de borboletas, basta cuidarmos de nosso próprio jardim”.

Fabio Lisboa

 

Imagens: IA geradas por Fabio Lisboa em 19-02-24, 21:28

Fabio Lisboa

O autor, contador de histórias e formador de professores há mais de 20 anos, Fabio Lisboa, já semeou cidades leitoras em projetos extensivos e como assessor por mais de 5 anos em São Paulo (SP) - tendo sido formador do Programa Salas de Leitura e contribuído na escrita do Caderno Trilhas de Aprendizagem II - Educação Infantil), em Monte Belo (MG) e em Ivinhema e Angélica (MS) - alcançando todos os profissionais de educação infantil e professores orientadores de salas de leitura destas cidades - e em Sharjah (Emirados Árabes, eleita pela Unesco, em 2018, capital mundial dos livros), onde também é formador da Sharjah International School of Storytellers e fica à disposição para semear a leitura e as histórias pelo mundo - germinando as histórias, a leitura, a oralidade e o diálogo em sua escola, comunidade, cidade ou país.

 

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