Contação de Histórias e Mediação de Leitura com Fabio Lisboa na Biblioteca de São Paulo – Foto: Bianca Tozato |
Por Fabio
Lisboa
Como dar
voz à palavra escrita? Ler ou contar histórias? Como incentivar a leitura? A
resposta parece óbvia: lendo!
Todavia,
a resposta pronta de quem sente na mente (e na vida!) os benefícios da leitura,
pode ser diferente da resposta dos que não se sentem assim diante da cultura
letrada. Michèlle
Petit, antropóloga
e pesquisadora especialista em incentivo à leitura na França e na América
Latina aponta obstáculos econômicos, sociais, culturais e mesmo psicológicos.
"Quando
se vive em bairros pobres na periferia da cidade, ou no campo, os livros são
objetos raros, pouco familiares, investidos de poder, que provocam medo. Estão
separados deles por verdadeiras fronteiras, visíveis ou invisíveis. E se os
livros não vão até eles, eles nunca irão até os livros.
Muitas
vezes, nesses ambientes, as raras oportunidades de contato com os livros se
deram na escola, e isso pode trazer más recordações, de fracasso e humilhação.
Muitas pessoas se sentem incompetentes ou envergonhadas diante de um livro; têm
a impressão de que este privilégio pertence aos outros, aos que tem
recursos."[1]
Do espaço
íntimo ao espaço público
No começo
do novo milênio, logo da primeira vez que li um livro em voz alta para uma
turma de crianças de uma ONG no Jardim Jaqueline[2], em São Paulo,
vi que a missão - e a dispersão - era grande.
E não era
por falta de boa vontade das crianças em ouvir. Elas me respeitavam e
queriam participar da brincadeira mas era como se eu estivesse falando outra
língua e eles estrangeiros em minha terra por onde eu tentava, sem muito
sucesso, conduzi-los.
Mas ora,
todos temos o direito de ouvir contos e todo leitor e todo ouvinte têm
direitos também. E o contador de histórias,
o pai, a mãe ou avós leitores, o professor, ou, no caso, o voluntário saber
ler, e ler, ainda que seja em alto e bom som, não basta. Seria como pregar no
deserto. Não basta a palavra dita para que
seja ouvida. É preciso muito mais para garantir
o acesso e o direito à leitura e à
cultura. Antes, é preciso ouvir e entender a quem, como e o que se conta. É preciso mediar para que as crianças, inclusive as pré-alfabéticas, sejam
elas as que recebem uma infinidade de estímulos audiovisuais e tecnológicos
(mas talvez menos interação humana que deveriam), sejam as diagnosticadas com
déficit de atenção ou as que vivem às bordas da sociedade, que aprendam
não só a decodificar a comunicação via escrita como tomem
gosto pela leitura da escrita, até sentirem-se donas do espaço letrado. Até que
trafeguem sem medo pelas linhas de um texto, construindo mundos e sentidos. Devemos mediar até que as crianças se sintam
também mediadoras de leitura. Até que
sejam ouvidas e se sintam assim verdadeiras contadoras de histórias. Até que
sintam no direito de se apropriar de sua cultura, da cultura de outros povos e
de sua própria história. Até que povoem com as suas mentes o universo literário
e tragam sementes vindas dele a ser plantadas no mundo real.
Pra que
esta ocupação pacífica e frutífera do campo ficcional e de nós mesmos ocorra, é
bom começarmos cedo, antes mesmo do nascimento, dizem os pesquisadores que
estudam os efeitos de estímulos pré-natais como a doutora
britânica Alessandra Lamont, da Keele University, que demonstrou que bebês
que ouvem determinadas canções no útero, depois de um ano de nascidas, quando
voltam a ouvir as tais canções as reconhecem e se afeiçoam delas.[3] Podemos
extrapolar o entendimento da Dra. Lamont para a possibilidade de acostumar os
bebês antes de virem ao mundo com a cadência do mundo das histórias. Claro que
vão amar ouvir a prosódia dos contos quando chegarem do lado de fora da barriga
da mãe. Imaginem a sensação de aconchego que a musicalidade textual trará ao
bebê. Dessa forma, um livro lido para o filho é estímulo vindo de uma voz
conhecida e amada que parece ressoar no mais íntimo do pequeno ser em formação.
Claro que a relação afetiva com os contos estará praticamente garantida, por
toda a vida.
Já
enquanto crianças, o melhor jeito, diz o autor Pedro Bandeira[4], é a
palavra escrita vir junto de um abraço, de carinho, de uma canção de ninar,
desde o berço. No entanto, para quem não tem pais leitores adquirir intimidade
com o mundo letrado requer, como na passagem da paixão ao amor, tempo e
dedicação.
Mãos à
obra
Bem, os
livros já tinham espaço garantido no meu peito e nas minhas estantes, então só
faltava tirar as ideias do papel. Para começar narrando histórias, peguei
algumas dicas literárias, passei em duas bibliotecas e uma livraria, apresentei
um projeto voluntário que foi aprovado pela coordenação da ONG e comecei. Até
onde havia entendido, levava comigo uma obra importante nas mãos. E é
mesmo! A questão é que no livro que haviam me recomendado, nuns tais
contos da tradição oral, a linguagem dos “contos populares” recolhidos por um
tal Câmara Cascudo era antiga e erudita demais para que aqueles ouvintes
contemporâneos, populares (e muitos ainda iletrados) acompanhassem de fato as
tais narrativas.
O
“popular” de muitas décadas atrás não tem nada a ver com o linguajar do povo de
hoje. Assim, a primeira “mediação de leitura” corria o risco de virar logo
chateação. O livro estava virando muro. O mundo da escrita ficava lá longe na
mente de quem não concatenava as ideias contidas “onde se estende o passeio
público” naquelas “Lendas brasileiras para jovens”[5].
Não quero
dizer que não devemos ler Câmara Cascudo ou Monteiro Lobato só porque trazem
uma fala de outros tempos, tanto que os leio ou reconto até hoje, mas é preciso
que o narrador os introduza quando ele estiver preparado e principalmente
quando o grupo de ouvintes estiver pronto para tal escuta, digamos, atemporal.
Máquina
do tempo
A
linguagem de hoje e as experiências pessoais com o texto lido desencadeando
emoções no narrador podem fazer as vezes da mediação em forma de máquina do
tempo. Uma boa prosa com um interlocutor de rosto enrugado nos coloca
face-a-face com o desconhecido de outrora. Mas ao mesmo tempo nos traz
segurança. A qualquer momento podemos regular a máquina para voltar ao
presente, retroceder ainda mais no passado, ou mesmo vislumbrar o futuro –
esperamos que com um certo - final feliz.
Então a
mediação começou, de fato, a fluir, quando eu lembrei das histórias que meu avô
me contava e de como o fazia e comecei a recontar o folclore de Cascudo com as
minhas próprias palavras. Quando achei autores que traziam marcas de oralidade,
dinamismo e inventividade à sua escrita - como Rosane Pamplona, Ilan Brenman,
Ricardo Azevedo e Fernanda Lopes de Almeida - os seus escritos eram,
num dique de peripécias narrativas se abrindo, barcos seguros e os
ouvintes toparam, já nas primeiras linhas, embarcar comigo.
Confie em
quem gosta de ler
"E
haverá alguma criança que, numa noite de verão na qual o sono custa a chegar,
não tenha imaginado ver no céu o veleiro de Peter Pan? Quero ensinar-lhe a ver
esse veleiro, quero escrever esse livro para contar-lhe que até os livros
sérios, até os livros dos adultos, até os livros difíceis não passam de
veleiros disfarçados, e que possuem o mesmo encantamento do barco movido à pó
dourado de Peter Pan. E preste atenção, Francesco, não se esqueça disto: confie
em quem gosta de ler..."[6]
Livros de
autores assim, que criam ou recontam a vida de personagens arquetípicos com a
força de um garoto que nunca envelhece como Peter Pan, eu podia até ler em voz
alta que as crianças e jovens não se perdiam na trama. Pelo contrário, se eu
pausava nos momentos de tensão crescente, percebia nos olhares a vontade de se
enredarem mais!
Forro no
céu
O sapo
estava na beira da lagoa coaxando quando passou o bem-te-vi.
- Pra
onde você está indo? - perguntou o sapo.
- Vou prum
forró no céu.
O sapo
ficou animado:
O contar
histórias é a arte da relação entre o contador e seus ouvintes[8]. Numa
relação de confiança convidamos o outro a compartilhar de nossos bons momentos.
Convidamos os que não tem asas a voar até encontrar uma festa no céu!
O que
podem fazer os mediadores de leitura, segundo a pesquisadora francesa Michelle
Petit:
"é
certamente levar as crianças - e os adultos - a uma maior familiaridade, uma
maior naturalidade na abordagem dos textos escritos. Transmitir a suas paixões,
suas curiosidades, questionar sua profissão e sua própria relação com os
livros, sem ignorar seus medos.
Dar às
crianças e aos adolescentes a ideia de que entre todas estas obras, de hoje ou
de ontem, daqui ou de outro lugar, existirão certamente algumas que saberão
lhes dizer algo em particular. Propor aos leitores múltiplas ocasiões de
encontros inéditos, imprevisíveis, onde o acaso também tenha sua parte, esse
acaso que às vezes faz as coisas tão bem. Onde também a transgressão encontrará
seu lugar. Se tanto leitores e leitoras leem à noite, ainda hoje se ler é
muitas vezes um gesto de sombras, não é apenas por uma questão de
culpabilidade: eles criam assim um espaço de intimidade, um jardim preservado
de olhares. Leem nas bordas, nas margens da vida, nos limites do mundo. E não
deixam de nos surpreender."
O
contador de histórias e os contos da tradição oral podem naturalmente propiciar
estes encontros, criar estes espaços invisíveis e, enfim, fazer uma transição
entre a recepção auditiva (com a qual todos estamos familiarizados, como a da
música, que nos dá a impressão de inteireza, de vibração interna, de onde
provém o contar de forma falada ou ler em voz alta) e a recepção visual (de
textos na forma escrita, sobre a qual a maioria dos brasileiros não tem
domínio, que dá a sensação de algo que vem de fora, percepção individual, e
especialmente para os não fluentes, estranheza).
Só livro?
Não basta
distribuir livros. Não basta ler. É preciso mediação. Antes, durante e depois: mediação
de leitura. Contação de histórias. Mediação no sentido profundo que podemos
encontrar na conceituação de Paulo Freire, Vigotsky, Forstein. Em outras
palavras, a apresentação da leitura, que deveria ser tratada como mediação de
afeto, deve começar antes de nos tornarmos leitores, desde o berço, ou mesmo na
gestação, durante o desenvolvimento infantil e enquanto pré-leitores, numa
bonita jornada rumo a nos tornarmos leitores críticos e cidadãos conscientes.
Jornada que não para nunca, vista a plasticidade cerebral, e mesmo na velhice,
comprovadamente nos ajudando a viver com saúde, visto que quanto mais usamos o
cérebro, mais saudável ele se mantém. Ou seja, se nas narrativas lidas
encontramos personagens que descobrem elixires da juventude, só pelo fato de
lermos estórias assim, já estamos fazendo a nossa história mais longa e
próspera[9].
Sem
dúvida, livros não se bastam, e é preciso o contato humano para romper as
barreiras entre o aprendiz (e os mediadores/contadores também nunca deixam de
sê-lo) e o seu objeto de saber (no caso, uma das mais antigas formas de
registro e perpetuação do conhecimento e do imaginário humanos). E quanto
mais aprendemos a ler, a ouvir contos, a ouvir o outro e dialogar; e
consequentemente mais entramos em contato com diferentes culturas, personagens
e modos de vida; mais
empáticos nos tornamos.
Assim
abrimos caminhos para um futuro mais brilhante, tanto individualmente para as
mentes leitoras, como para a nossa história a ser escrita em sociedade.
E é assim que o livro, que poderia ter virado muro,
ao abrirmos o coração junto com as páginas desta ou daquela história, a começar
pela nossa, vira ponte.
Fabio
Lisboa
Foto:
Contação
de Histórias e Mediação de Leitura com Fabio Lisboa na Biblioteca de São Paulo –
Foto: Bianca Tozato
Posts Relacionados
Direitos Universais das Crianças em Escutar Contos (por Leonardo Posternak)
Direitos do Leitor (por Daniel Pennac)
Direitos do Ouvinte (por Fabio Lisboa)
Por que ler?
Oficina
Oficina
Inscrições
para a última oficina do ano de 2017 com Fabio Lisboa: Oficina
Contar Histórias em 5 Es 2017: Dos
Livros e Oralidade à Performance e Empatia, a ser realizada no auditório da Livraria Martins Fontes
Paulista em dezembro (com desconto até 25-11-17):
DESCONTO
PARA LEITORES DO BLOG e da SALA DE LEITURA - Procedimento: Após escolher e por no carrinho uma opção
de inscrição, insira e digite o código leitorblog para ganhar 10% de desconto.
[1]
PETIT, Michèlle
- Leituras: do espaço íntimo ao espaço público, ed 34, SP, p. 24
[2] Casa
da Criança e do Adolescente Betinho.
[3] LEVITAN, Daniel - This
is your brain on music – Dutton (Penguin Group), NY, USA - Kindle version Lamont,
2006, Loc 3630-3670
[4] Pedro Bandeira em entrevista ao Jornal
da Band.
[5] CASCUDO, Câmara - Lendas brasileiras
para jovens, ilustrações do Jô Oliveira – Ed. Global, SP, 2006, p. 93
[6] COTRONEO, Roberto, Se uma criança
numa manhã de verão: Carta para meu filho sobre o amor aos livros. Trad: Mario
Fondelle, Rocco, RJ, 2004, p. 21 (grifo
nosso)
[7]
AZEVEDO, Ricardo
- Bichos do Mato, Ática, 2005, p. 15
[8] MATOS,
Gislayne; SORCY, Inno – O Ofício do Contador de Histórias – WMF Martins Fontes,
2009, p. 8
[9] De
MARIA, Luzia – Clube do Livro – Leitura, conexões neurais, construção da inteligência
e vitalidade do cérebro, p. 114-134.
2 comentários:
com suavidade e doçura encontramos Fabio Lisboa nos entregando como presente a sua sabedoria... historias e historia fazem nossa vida um livro encantado...
E você me entregando um presente a continuar escrevendo, Mara, muito obrigado! Confesso que às vezes o tempo fica curto pra escrever no blog - e sei que a maioria dos meus leitores é silenciosa rs... mas comentários eloquentes como o seu me incentivam a criar o tempo! Espero que encontre tempo em sua agenda pra ler bons livros - e escrever tb - e quem sabe nossos caminhos literários literalmente não se cruzam qualquer dia, abraços
Postar um comentário