Reconto: Fabio Lisboa
Por muitos anos aquela comunidade cristã viveu em harmonia. A rotina era simples: os monges acordavam cedo, oravam, meditavam, trabalhavam a terra garantindo o seu próprio sustento, liam, estudavam, conversavam, contavam histórias, em especial das Sagradas Escrituras, trocavam experiências, inclusive metafísicas e à noite cultivavam o silêncio até o novo amanhecer de orações.
A plantação de trigo fazia o solo dourado e o pão de cada dia ser um tesouro. Os ipês e tipuanas propiciavam o frescor das sombras para lerem o mundo. O colorido de gerânios, margaridas e bromélias faziam o olhar ficar mais leve.
Já as generosas amoreiras, jabuticabeiras e pitangueiras alimentavam os pássaros logo cedo e os monges logo depois, tanto comendo no pé as frutas não bicadas, quanto colhendo as demais intactas para a produção de geleias.
Assim, os frutos semeados e produzidos por aquela comunidade eram sempre doces. Bem, quase sempre, porque às vezes, um monge cego colhia frutos ainda verdes, outro descuidado pegava frutos bicados que logo azedavam.
Para que o doce assim de fato o fosse, um dia, impediram o cego de realizar a tarefa de pegar frutos. A seguir começaram a inventar uns jeitos de afastar os pássaros. Depois, isolaram de vez os cegos, desajeitados, descuidados, ignorantes e logo toda a comunidade estava dividida. Não demorou muito, deixaram de ouvir o canto harmônico que vinha do céu.
Os tempos passaram a ser sombrios - mas sem sombra porque para ampliar as instalações foi preciso cortar as árvores. Cada um se preocupava apenas com o seu pão e se esqueciam de plantar o trigo. Havia inusitadas dissonâncias noturnas, no interior do mosteiro e na cidade que começava a se formar em torno dele ignorando o clamor silencioso do bosque ao redor. Agora havia intermináveis barulhos à noite, dentro e fora de si e assim os monges perdiam a paciência uns com os outros, e o sono.
Como não tinham uma importância prática, as flores deixaram de ser cuidadas e as histórias de ser contadas. Ambas, assim que caíram no esquecimento, começaram a murchar, os poucos contos que restavam não eram contados nem ouvidos com tanto entusiasmo, as abelhas sem alimento sumiam e as poucas flores que restavam não eram polinizadas, não se reproduziam.
Não mais conversavam, e sim discutiam, em especial sobre as leituras das Sagradas Escrituras ao qual divergiam ferrenhamente de opinião. E se não concordavam, sequer se dignavam a escutar o outro. Se descartavam e ignoravam uns aos outros sem sequer se olhar nos olhos. Desrespeito, alienação, segregação viraram rotina e até o pão parecia aquele que o diabo amassou.
Estava tão difícil a situação que o abade resolveu procurar o seu antigo guru. Era ele o próprio fundador da congregação em que viviam e o velho sábio fez voto de silêncio e se retirou para o meio da floresta no mesmo dia em que pararam de ouvi-lo e cortaram as centenárias árvores ao redor do mosteiro.
Não seria fácil encontrá-lo, não fosse o abade conduzido pelo canto confluente dos animais do ar e a marcha convergente de bichos terrestres rumo a uma caverna onde foi possível encontrar o mestre atrás da luz de uma pequena fogueira.
Ao ouvir o estado em que se encontrava o outrora refúgio de paz quase enclausurado por uma metrópole de guerra, e o pedido de perdão e de ajuda do abade, o mestre rompeu o silêncio:
- Ao ser indagado pelos fariseus sobre quando o Reino de Deus chegaria, Jesus disse: “A vinda do Reino de Deus não é observável. (...) pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós”.
O abade ouvia atentamente o guru, que continuou:
- E como encontrar esse Reino dos Céus na terra? Ora, “ama o teu próximo como a ti mesmo”, o Mestre nos ensinou. E se Ele amou e aceitou a todos, por que nós, esquecendo-nos de seus ensinamentos, ou pior, em nome Dele, deveríamos desamar, julgar, discriminar, descartar o outro?
O abade interviu:
- Mestre, as palavras de Cristo são inspiradoras e, na tranquilidade desta mata, eu te escuto. Mas como faço pra que escutem a palavra do Messias no mosteiro barulhento no meio da cidade ensurdecedora?
- Ora, - continuou o guru - diga-lhes que o Messias já está entre eles.
Dizendo isso, o guru silenciou. Voltou com o abade para o mosteiro a fim de encontrar o Messias ressuscitado. Quando o abade comunicou à comunidade as palavras proféticas,”o Messias já está entre nós”, o choque foi total. Houve descrença, desconfiança, irritação, gritos e insultos.
Mas houve também a vontade de que a profecia fosse verdadeira. Houve curiosidade. “O Messias já está entre nós?” Se aquilo era verdade, quem seria ele?
Começou a renascer o respeito, afinal, ninguém queria tratar mal o possível futuro Salvador… Todos começaram a cuidar melhor de sua casa, o mosteiro, que teria a honra de ser a morada do próprio Senhor. O trigo voltou a ser semeado. Logo, o pão de cada dia, tesouro saborosíssimo, voltou a ser compartilhado. Os jardins floresceram de novo. Os pássaros e as abelhas, também filhos de Deus, tiveram seu lugar devido de volta. As árvores e o amor ao próximo foram semeados em solo fértil.
O mosteiro se fundiu à cidade e assim esta ficou mais hospitaleira, mais bela, mais colorida, mais sagrada. Alguns dizem que as palavras do guru foram blasfêmia, até hoje esperam pelo Messias, sem nunca tê-lo encontrado. Outros creem que o guru estava certo, e dizem que, mesmo sem aparecer, desde aqueles tempos até hoje, o verdadeiro Mestre já está entre nós.
Reconto inspirado em história da tradição oral: Fabio Lisboa
Reeferência teórica
FREEMAN, Laurence - Jesus, o mestre interior, wmf Martins Fontes, 2004.
Primeira citação do guru: Lucas (24:21).
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