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História: O que é justo...


Conto da tradição oral irlandesa recontado por Fabio Lisboa

Este conto relata o encontro de dois personagens irlandeses históricos que viveram no início do século XIX, um deles, um homem muito simples e injustiçado; o outro, um letrado advogado; incansável buscador de justiça.


Wilson Paddy Wood era um lenhador humilde e honesto que morava num pântano mas visitava quase todo santo dia a cidade vendendo um pouco de lenha a um preço justo e comprando o que comer e vestir. Mesmo vestindo roupas fora de moda e largas - que, aliás, combinavam com sua espessa barba, cabelo desgrenhado e com seu peludo jumento - era bem visto pela maioria, que se encantava com sua simplicidade e bom coração. Wilson dizia assim:

- O que é justo é justo: Madeira! Madeira! Pague o quanto puder! Se não puder, pague quanto puder - e quando puder!

Nem é preciso dizer que a filosofia de vendas do lenhador muitas vezes o levava a ser pago com um "quanto" um tanto quanto irrisório, se é que o "quando" um dia chegasse.

No entanto, no dia em que Wilson Paddy Wood se encontrou com Justin Paz O'Connell, um dos mais famosos e justos advogados da Irlanda daquele tempo, o lenhador só havia topado com clientes generosos. Com o dinheiro ganho, pensou: - Ah, hoje eu compro um vestido pra minha mulher ficar mais linda - e eu mesmo, fico mais lindo, cortando essa juba!

Para tal, o homem simples foi se dirigindo, primeiramente, ao velho e bom Ernesto, o melhor - e único - barbeiro da região, fazendo os cálculos:  - Tenho 100 reais, compro comida com 40, compro o vestido com 30, faço o cabelo por 10 e ainda me sobram 20 reais.

Só que chegando lá, uma triste notícia, o bom Ernesto descansara para sempre. Em seu lugar, o seu filho Pedro, de 20 e poucos anos, que havia estudado na França, continuaria o trabalho do pai. Só que pra começar, expôs seu diploma de cabelereiro na parede: "Hair Stylist". Mudou também a placa na entrada de “Barbearia do Ernesto” para "Pierre - Hair Design". E arrancou também o cartaz que dizia: "Corte 10 reais".

O novo barbeiro, quer dizer, hair stylist, reparou no homem estacionando um jumento em frente à sua barbearia, digo, seu salão de beleza e olhou com desprezo a cena e teve nojo daquele seu possível cliente peludo, barbudo e cabeludo.

Mas disfarçou o seu asco, recebendo-o com um sorrindo falso:

- Bon jour, Monsieur, sou Pierre, hair stylist a seu dispor, pronto para transformar o seu cabelo num acontecimento!

Wilson achou aquilo um pouco estranho, a começar pelo nome "artístico" do rapaz cujo nome verdadeiro ele tinha certeza ser Pedro. Mas pensando que sua esposa há tempos ansiava por vê-lo mais alinhado, decidiu sentar na cadeira e deixar seu cabelo acontecer nas mãos do tal Pierre.

Quando o artista terminou sua obra, o cabelo cortado e remodelado ficou tão bom que Wilson pensou até em pedir que Pedro lhe fizesse também a barba. Mas lembrou que seu dinheiro estava contado.

Pegou uma nota de dez reais e, por educação, perguntou ao cabelereiro recém-formado:
- Quanto lhe devo, Pedro?
- Cem reais.
- O QUÊ?
- Ora, isso mesmo que ouviu, cem reais. E me chame de Pierre, por favor.
- Mas o seu pai cobrava sempre DEZ REAIS, Pe... Pierre! O que é justo é justo!
- E o que você entende de justiça? Meu pai não está mais aqui, está?
- Desculpe, mas, pelo menos hoje, você poderia honrar o seu pai e o antigo valor, como eu pensei que fosse. Cem reais é tudo o que tenho, e ainda tenho que comprar comida.
- Isso não é problema meu, é? Por que não perguntou os detalhes antes? Pague ou chamo a polícia!

Wilson foi tirando tudo o que tinha dos bolsos e as notas pareciam pesar em sua mão que estendeu a contragosto:

- Está bem, fique com os cem reais, mas fique sabendo que isso não é justo!
- Bem vindo a um mundo injusto, Monsieur! E está convidado a nunca mais voltar aqui!

E lá se foi o jumento e Wilson Paddy Wood voltando pra casa, de mãos vazias, com a cabeça retorcida e o coração machucado, sentindo-se triste e injustiçado. E lá ia chegando na cidade Justin Paz O'Connell, advogado que, pra fazer justiça, não cobrava nada de quem não podia pagar e pressentia o rastro da injustiça de longe.

- Boa tarde, meu bom Wilson!
- Boa tarde, seu Justin, tudo em paz?
- Sim, meu caro, e você, parece meio cabisbaixo, algo não está justo?
- Justo!? Não, não é justo! Aquele novo barbeiro não é justo! E é justo por isso que estou injuriado...

E Wilson contou a sua história a Justin.

Depois de descer do seu cavalo e ouvir com atenção o ocorrido, o advogado teve uma ideia e Wilson correu a colocá-la em prática. Vestiu uma capa e chapéu preto que Justin lhe emprestou. Se dirigiram ao salão de beleza e estacionaram o cavalo de raça de Justin em frente ao local, deixando o jumento peludo de Wilson na rua ao lado.

O lenhador foi instruído a não tirar nem a capa nem o chapéu, ficar de cabeça baixa e não falar nada para não ser reconhecido. Mas ele mal conteve o sorriso ao perceber que o plano de Justin começava a dar certo - ele foi tratado como se fosse um novo cliente e foram recebidos com entusiasmo pelo cabeleireiro:

- Bon jour, gentlemen, como posso ajudá-los?

- Bom dia, você poderia cortar os pelos, meus e de meu companheiro?

O advogado disse isso gesticulando e o barbeiro entendeu que o homem se referia a fazer a barba, apesar de achar estranho aquele modo de dizer, pensou: bem, os advogados tem uma língua própria, não é mesmo? Ainda mais o famoso Justin Paz O'Connell, que ele prontamente reconheceu:

- Claro, senhor O'Connell, será uma honra servir vossas excelências.

Nesta hora Wilson quase teve um ataque de riso.

- Quanto nos custará o serviço?

- Bem, dez reais cada um, é um preço justo, não acham? Para vocês voltarem sempre!

- Claro, então está combinado, já lhe pago adiantado e pode começar pelos meus pelos faciais - concluiu Justin, estendendo a mão com os 20 reais.

O barbeiro Pedro pegou o dinheiro e prontamente começou o serviço. Em poucos minutos a barba do advogado estava aparada. Pedro olhou com certa repulsa para a barba cerrada do outro e disse a Wilson:

- Agora é a sua vez, Mister, pode se sentar aqui.

- Espere, - interviu Justin - quem disse que esse é o meu companheiro? Aliás, quanto à ele, não se restrinja aos seus pelos faciais. Pode tosar os pelos de seu corpo todo.

- Ããã? O que o senhor quer dizer com isso?

- Wilson, pode chamar o meu companheiro.

O lenhador tirou o chapéu e assobiou, sendo que logo depois quem apareceu à porta do salão de beleza foi o seu jumento. O barbeiro finalmente entendeu que ele é quem havia sido tratado como jumento em toda esta ação e expressou sua indignação:

- Mas isto é injusto! Não foi isso que combinamos! Eu demoraria a tarde toda para cortar os pelos desse jumento e perderia muitos clientes, isso sem contar a bagunça! Tudo isso por 10 reais?!

Nessa hora foi Wilson quem respondeu:

- Isso não é problema nosso, é? Por que não perguntou os detalhes antes? Faça o serviço que já está pago ou chamamos a polícia!

O barbeiro percebeu como havia sido grosseiro anteriormente e ficou obscurecido sem saber o que fazer mas Justin Paz iluminou o caso:

- Talvez possamos chegar a um acordo. Pedro, já que não realizará o serviço pelo qual pagamos, que tal se você devolvesse o dinheiro de Wilson e ficamos quites?

Pedro não pensou duas vezes, pegou os cem reais e o entregou a Wilson. Este devolveu dez reais ao outro:

- É pelo corte de cabelo, que ficou ótimo. O que é justo é justo.

Pedro se surpreendeu com a atitude daquele homem humilde mas muito sabido e honesto, pediu desculpas, e decidiu também ser justo:

- Bem, se o que é justo é justo, o senhor Justin já pagou adiantado por dois "cortes de pelos" e até agora só fiz um, então, sente-se aí Wilson, que agora é a sua vez.

E neste dia Wilson Paddy Wood voltou pra casa com comida, um vestido para a mulher, 20 reais no bolso e com a barba e cabelo bem feitos. Nem é preciso dizer que foi muito bem recompensado pela esposa.


Justin Paz O'Connell, por sua vez, continuou naquele dia e até o fim de seus dias nesta terra, trabalhando pela justiça, construindo a paz.

Quanto à Pierre achou melhor voltar a ser Pedro e durante um bom tempo manteve o preço cobrado por seu pai. E, para ser justo, quando aumentou o valor, colocou uma placa e avisou a cada cliente sobre a mudança. Afinal, depois daquele dia, nunca mais se esqueceu de que "o que é justo... é justo".

Conto da tradição oral irlandesa recontado por Fabio Lisboa


Referências
Versão traduzida e recriada por Fabio Lisboa a partir de “The greedy barber” (O barbeiro ganancioso) in The King with horses´s ears and other Irish folktales, Retold by Batt Burns, illustrated by Igor Oleynikov, Sterling, New York, 2009, p. 27.

Edição (Contar Histórias): foto de Michael Coghlan de Estátua da Deusa grega Temis carregando a balança da justiça.

Curiosidades
Os dois personagens irlandeses são: Daniel O'Connell, também conhecido como "o Libertador" e Paddy, o cortador de grama. Segundo o autor Batt Burns, camponeses que não podiam pagar por um advogado procuravam o aconselhamento de O'Connell. Este, sem cobrar nada, dava a todos escuta, atenção e aconselhamento.

"O que é justo é justo" é um ditado popular que ouvi muitas vezes de minha avó Ida. Apesar da aparente redundância, ao ser dita no contexto de um dilema que trate de justiça, a frase parece adquirir um significado mais contundente com a repetição tautológica de seus termos fazendo com que "o que é justo" (e até o que é injusto) seja (ou deva ser) mesmo "justo".

Uma palavra-chave que se perde na tradução
"Now", said O'Connell, "start shaving my companion as you promisse, and do a good clean job for two shillings!"

"Agora", disse O'Connell, "comece barbeando/tosando o meu companheiro como você prometeu, e faça um bom e limpo trabalho por dois shillings!"

O verbo "to shave" pode tanto significar "barbear" quanto "tosar os pelos" (de um animal). Como em português o verbo barbear não permite esta ambiguidade, um sinônimo simples revelaria o engenhoso plano do advogado ao barbeiro antes do tempo, tornando a trama incoerente.  Optei pelo advogado dizer que queria "cortar os pelos". Ao ouvir esta expressão incomum, o próprio personagem estranha ("... apesar de achar estranho aquele modo de dizer, pensou: bem, os advogados tem uma língua própria, não é mesmo?") recurso narrativo que visou tornar, assim, o texto adaptado na nova língua o mais coerente possível.

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