Ilustração de Bruna Assis Brasil em Branca de Neve e as Sete Versões.
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por Fabio Lisboa
Os
olhos humanos de uma sociedade que exageradamente se vê através de olhos
eletrônicos coletivos são suficientes para nos enxergar como indivíduos? Neste
contexto, os nossos sonhos são traçados por
nós ou por outros para nós?
Os
contos de fadas reforçam valores humanos ainda essenciais ou ideias antiquadas que
não servem mais para nada nos dias de hoje? Será que estas histórias tão
antigas podem mesmo refletir as profundezas da psique humana e por isso
tornaram-se imprescindíveis na construção do nosso “eu” e na conexão com o
outro?
Para
começar a responder a estas colocações, tudo depende da roupagem com o qual revestimos os contos pois a conexão (ou não)
com os ouvintes contemporâneos depende da forma com que a narrativa arcaica é
recontada. Esta roupagem, esta camada
externa de palavras do texto e prosódia do contador de histórias permitirá ao
ouvinte “experimentar” se a vestimenta serve ou não.
Se
houver identificação com o conto, ou seja, se ele servir, acontece uma mágica.
O ouvinte não só começa a se ver melhor. Ele ou ela começam a se ver de ângulos
novos pelos quais nunca tinham se imaginado.
Por
fim, nós, contadores de história e ouvintes, começamos a enxergar diferenças
superficiais mais sutis e grandes semelhanças de nossa psique humana. Ao
enxergar nossas essências percebemos que somos muito parecidos. Ao enxergar o cerne
de um conto de fadas percebemos que eles também são parecidos.
A
essência destas histórias trata de virtudes e fraquezas universais e atemporais
como amor, gratidão, esperança, egoísmo, beleza, vaidade, inveja, fuga ou
descoberta do “eu”, entre outros temas.
No
entanto, a forma com que este núcleo do conto é recontado (e trazido ou não à
tona) é variável e pode reforçar modos de ver o mundo que não cabem mais nos
olhos da sociedade contemporânea ou apresentar modos cabíveis ou ainda novos
modos não experimentados de observar e apreender a realidade e a fantasia.
Neste
artigo, vamos olhar de perto dois contos de fadas analisando como o seus
núcleos temáticos são recontados e podem mostrar um pouco de como somos ou
desejamos ser. No clássico “Branca de Neve”, a rainha madrasta deseja ser (e é)
a mais bela mas precisa se olhar num espelho mágico para que este valide quem
ela é:
“-
Espelho, espelho meu, existe alguém neste reino mais bela do que eu?”.
A
beleza só não basta. É preciso ser mais bela do que as outras. E se faz
necessária também a validação do outro – no caso, de uma figura masculina – que
é quem tem a palavra final sobre se a rainha é a mais bonita ou não. Ainda a ditadura
do outro sobre a beleza feminina parece persistir.
A
adolescente do novo milênio ainda precisa olhar-se no espelho dos olhos dos
outros para validar a sua aparência: “modele o seu cabelo assim, assim; pinte
as unhas assim, assado; use roupas assim, assim; só compre marcas assim,
assado.”
Em
seu livro Spinning Straw into Gold (Tecendo da palha o ouro: o que os contos de
fada revelam sobre as transformações na vida da mulher) Joana Gould questiona:
“Como e quando a
mulher começa a conhecer o seu ser sexual individual? Ao olhar-se no espelho,
especialmente durante a adolescência. que por sinal não é o jeito que os
garotos aprendem a se conhecer. As adolescentes se olham em espelhos o dia todo
para encontrar como os outros as veem, qual o impacto elas terão no mundo ao
redor delas, o que pode ser melhorado, projetado melhor ou vai ter que esperar,
e ainda o que pode ser apenas lamentado – críticas pela voz do espelho que
mudam a todo o momento.
(“Uma tábua,
seca,” diz o espelho. “Ainda sem curvas! Você nunca vai ter um homem, não com
estas minúsculas ondinhas que você chama de seios. Por que você não repensa o
seu cabelo? Uma escova progressiva – poderia ajudar. Ou clareamento. E não
fique aí se escondendo como uma nerd. Você quer ser vista... Assim é melhor.
Quer saber uma coisa? Você tem potencial, garota. O seu dia está chegando.”).
(...)
Branca de Neve é
uma história sobre a aparência, sobre ver e ser visto, um conto brilhante sobre
sabedoria, neve, um espelho e um caixão feito de vidro. As mulheres neste conto
são uma boa mãe olhando pela janela a neve caindo, uma mãe má que olha apenas
para o seu próprio reflexo no espelho, e uma filha que deita quieta como se
estivesse morta e é vista. Mas qualquer história que lida com a aparência e o
olhar é necessariamente uma história sobre o tempo, que é a força que supera a
beleza.”[1]
A
beleza, a vaidade e a passagem do tempo desafiando a ambas, sem dúvida,
continuam temas relevantes para o nosso tempo. Mas as relevâncias temáticas não
param por aí.
A
autora ressalta o momento em que o caçador está prestes a matar Branca de Neve.
Ele é como um pai passivo que obedece aos desejos mais egoístas e até cruéis da
mãe (ou madrasta). Então na última hora, ele sente compaixão e introduz uma
nova possibilidade para a princesa, a fuga.
Se
há uma nova possibilidade, um novo ponto de vista, então pode haver vários,
portanto, nenhuma ameaça inevitável é mais tão temível e pode até mesmo ser
evitada.
A
possibilidade de falar mais alto do que as ameaçadoras vozes dominantes e a
possibilidade de chegar a um final feliz também serão importantes em nossa
jornada rumo ao autoconhecimento e à realização pessoal.
Os
contos de fadas podem nos ensinar a ver além do óbvio, além do que o outro diz,
a ouvir além do que a voz do espelho diz.
Na
continuação deste artigo (no próximo post) vamos analisar como fazer ver adiante
do que é evidente ao recontar a famosa aventura de “Branca de Neve” e um conto
de fadas escocês não muito conhecido por aqui.
por Fabio Lisboa
Referências
Imagem
Ilustrações
de Bruna Assis Brasil in Torero, José Roberto -Branca de Neve e as Sete Versões
/ José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta; ilustrações: Bruna Assis
Brasil – Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
Livros
Grimm,
Jacob – Contos dos irmãos Grimm / organizado, prefaciado e selecionado pela
Dra. Clarissa Pinkola Estés, tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco,
2005.
Torero,
José Roberto -Branca de Neve e as Sete Versões / José Roberto Torero e Marcus
Aurelius Pimenta; ilustrações: Bruna Assis Brasil – Rio de Janeiro: Objetiva,
2011.
Gold, Joan - Spinning straw into gold: What Fairy
Tales reveal about the transformations in a woman´s life - Random House: New
York, 2006, p. 6.
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Próximo
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da alma (parte 2 de 3)
[1] Trecho extraído e traduzido
por Fabio Lisboa de Gold, Joan - Spinning straw into gold: What Fairy Tales
reveal about the transformations in a woman´s life - Random House: New York,
2006, p. 6-7.
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