Ilustração de Igor Oleynikov em The King with horse´s ears and other
Irish folktales
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História: O rei que
tinha orelhas de cavalo
Inspirada
num conto da tradição oral irlandesa
Era
uma vez um rei tão bonito e bravo quanto um cavalo selvagem. Era o rei Equinus
IV do reino de Apparentis, um lugar onde cada pessoa buscava esconder os
defeitos para ser, ou melhor, parecer... perfeito.
Equinus
se olhava no espelho e via o rei mais bem feito que já houve do mundo, já os
súditos olhavam pra ele e viam o rei mais ridículo que já existiu no reino. Era
ridículo aquele jeito de nariz empinado e de se vestir empopado. Mais ridículo
ainda o seu jeito de tratar os serviçais como um cavalo. E se a rainha ou suas
aias pedissem para o rei ser mais gentil, sobrava coices para elas também.
Pobres ou nobres não escapavam das patadas de Equinus.
E
quem mais sofria com a mania de beleza e rudeza do rei eram os cabelereiros que
se descabelavam para tentar atender aos mandos e desmandos da última moda do
reino de Apparentis – o que obviamente nunca conseguiam.
O
rei desconhecia palavras mágicas como “por favor” e “obrigado” e o pagamento
por servi-lo eram insultos. Num dia era
assim:
-
O seu salão devia se chamar Três Irmãos! – esbravejava Equinus.
-
Por que, meu rei?
-
Porque um irmão corta o cabelo e os outros dois seguram o cliente na cadeira
pra ele não ir embora.
No
outro dia era pior:
- Vossa
majestade não gostou do corte?
-
Gostei tanto que devia mandar cortar fora a sua cabeça!
E
quando todos achavam que Equinus não podia ser mais cavalo, aí é que ele quase
se transformou mesmo em um. Foi no dia em que ganhou um espelho mágico,
presente da Fada Verdade.
A Verdade
iria mostrar que os exteriores do rei de Apparentis enganam. Seu rosto, seu
corpo e suas roupas continuavam belas mas ao se olhar no espelho levou um
susto:
Equinus
tinha orelhas de cavalo! Ele desviou o olhar do espelho, achando que as orelhas
desapareceriam junto com aquele seu reflexo ridículo. Mas as orelhas
continuavam lá, refletindo quem ele realmente era. Não coube mais nem a coroa
em sua cabeça.
Então
o rei pensou assim: “Bem, só há um jeito de manter as aparências: arranjando
uma coroa maior que esconda as minhas orelhas! E os únicos que saberão o meu
segredo serão os cabelereiros que cortarem o meu cabelo.. mas estes, em
seguida, terão a cabeça cortada. Desse jeito, ninguém saberá o meu sinistro segredo
e continuarei sendo o rei mais lindo do mundo.”
E assim
foi. Um a um, os cabelereiros foram perdendo a cabeça de verdade. E a Fada
Verdade ficou triste de constatar que se a verdade dói, tentar esconder a
verdade dói mais ainda.
Os
cabelereiros do reino também tentavam esconder a verdade aposentando as tesouras
e dizendo-se sapateiros, cavaleiros ou qualquer outra profissão que não fosse
tão arriscada para as suas cabeças. Mas o rei sempre descobria que estavam
mentindo. Ao martelarem um sapato deixando a sola esfolada ou empunharem
tremulamente uma espada, eram obrigados a cortar o cabelo de Equinus IV e, no
momento seguinte, dar adeus à vida. O imperador começou a acusar e condenar até
quem não era nem nunca tinha sido cabelereiro, distorcendo e impondo a verdade
a seu favor e tornando o seu reino cada vez mais... Apparentis.
Todos
se esconderam da verdade a não ser Jonas Tesoura que se apresentou ao rei para
cortar a ameaçadora cabeleira escura que se escondia debaixo da coroa de ouro.
-
Que milagre, um cabelereiro de verdade por aqui! Você não tem medo de descobrir
o meu segredo e morrer por isso? – perguntou Equinus IV, já com um sorriso
sádico no rosto.
-
Não tenho medo pois sei que ficará tão satisfeito com o seu novo corte de
cabelo que vai querer continuar no mesmo estilo real solicitando a minha
presença sempre e, para isso, deixará a
minha cabeça grudada no pescoço, vossa majestade.
-
Qual o seu nome, insolente?
-
Sou Jonas Tesoura, meu rei.
-
Pois faça o seu trabalho e este definirá o seu destino. Guardas, retirem-se!
Como
sempre, o rei pediu que ficassem a sós, ele e o cabelereiro para que ninguém
mais descobrisse o seu embaraçoso e sigiloso mistério equino.
Na
sala do monarca, Jonas afiou as tesouras e, na sala de espera, ao lado, os
carrascos afiaram os machados.
O
rei tirou a coroa e suas orelhas de cavalo pularam pra cima quase batendo no
nariz de Jonas que naquele momento examinava a densa cabeleira de perto.
-
Hummm, interessante... Quer dizer que é por isso que todos antes de mim
perderam a cabeça? – pensou Jonas. “E o pior é que estas orelhas até que
combinam com o rei! O difícil vai ser fazê-lo enxergar isso. Bem, a morte pra
mim é certa, assim como é para todos. Mas isto acontecerá um dia, de
preferência distante. Calma. Não pretendo perder a cabeça antes do tempo.”
Concentrou-se
no momento presente para presentear o rei com um corte de cabelo inusitado. Um
que não mais tentasse esconder suas orelhas de cavalo e sim que as
privilegiasse. Um corte que realçasse a beleza natural de Equinus.
Ele
pôs o rei de costas para o espelho para que este não reclamasse antes do fim. Os
longos fios ao redor da orelha começaram a ficar curtinhos.
O
profissional só parou um pouco antes de finalizar, para amolar a tesoura e,
enquanto o amolador fazia um barulhão, aproveitou e cortou também a coroa do
rei, sem que este percebesse, deixando dois grandes buracos bem no lugar onde
antes as orelhas podiam ficar escondidas.
-
Pronto! Terminado, vossa alteza!
O
rei odiou. Olhou pra baixo! Não suportou ver a sua ridícula imagem no espelho.
Virou de costas, pôs a coroa furada, abriu a porta e chamou os guardas:
-
Matem este incompetente.
Os
guardas entraram e tomaram um susto ao ver, saindo pela coroa furada, as
orelhas de cavalo do rei. Depois ficaram com vontade de rir, pensando: - Então
esse é o segredo do rei! Em seguida, disfarçaram a surpresa e o riso e, no
fundo no fundo, começaram a temer pela própria vida já que agora eles também
sabiam o fatídico mistério real.
- Incompetentes,
o que estão aí esperando com estas caras de espanto?
Os
guardas fecharam a cara e seguram Jonas pelos braços.
Nesta
hora, a rainha entrou na sala e interviu:
- Meu
amado imperador, por favor, não mate este homem, ali fora se encontra a mãe dele
que clama por sua compaixão, dizendo que o filho é tudo o que ela tem para amar.
-
Pois a única coisa que tenho nesta vida para amar é a minha aparência e este rapaz
não me ajudou em nada.
- Engano
seu, meu senhor, você tem a mim e aos seus súditos para amar e foi este seu
súdito Jonas o único que teve a coragem de mostrar a todos a verdade além das
aparências e agora você pode amar quem você é - e como é. E a verdade é que vossa
majestade até que não fica mal com estas orelhas de cavalo! Pelo menos eu vou
continuar te amando assim mesmo – disse a rainha, com um sorrisinho.
Silêncio.
O
rei se virou e se olhou no espelho.
Todos
também o olharam. Mas não sabiam se riam ou se choravam. Aos poucos sorriram
meio sem graça.
O
rei caiu na gargalhada. Todos também gargalharam.
-
Quer dizer que terei que matar a todos vocês agora?
Todos
fecharam a cara.
-
Brincadeira! – gargalhou novamente o rei.
E
todos sorriram meio sem graça de novo.
- Este
homem me ensinou que um dia a verdade sempre aparece. E o melhor, me mostrou
que, em vez de tentar esconder as nossas imperfeições a qualquer custo, é
melhor rir de si mesmo. Sua vida será poupada. Na verdade, não só ele, mas
todos estão perdoados por descobrirem e revelarem o segredo do rei.
- E
você, minha rainha, me ensina todos os dias sobre o amor, a gentileza e a
compaixão... e quem sabe com estas orelhas mais aparentes eu começo a te
escutar melhor! Espero que um dia todos tenham compaixão e me perdoem também
pelos males que já fiz tentando esconder quem eu era. Espero que me aceitem
como sou hoje com a promessa de tentar ser melhor amanhã.
Quando
voltou ao seu quarto, a primeira coisa que fez foi se olhar no espelho mágico da
Fada Verdade, aquele que mostra as pessoas como elas realmente são. E o rei
estava novamente lindo, sem aquelas orelhas que combinavam com os cavalos mas
não com os homens. A partir daquele dia, o castelo do rei e os seus arredores
começaram a ser chamados de Reino Veritas, um lugar cheio de erros e acertos
mas, acima de tudo, um lugar onde cada pessoa busca a verdadeira beleza de ser
humano.
História inspirada
num conto da tradição oral irlandesa
Imagem e Referências
The King with horse´s ears and other Irish folktales –
by Batt Burns illustrated by Igor Oleynikov – Sterling, New York, 2006. (em inglês)
Posts anteriores:
Contos de Fadas:
espelhos mágicos da alma (parte 2 de 3)
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2 comentários:
Amei este conto e vou aproveitá-lo na contação que farei para as crianças nesta semana! Contribuição bárbara, Fábio! Obrigada!
Que bom, Vania! Agradeço o relato e também a sua disponibilidade em escrever um artigo especialmente para o blog abordando como os Contos de Fadas podem auxiliar professor e aluno a superar dificuldades na escola. O seu post estará disponível on-line amanhã, abs,
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