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Contos de Fadas: espelhos mágicos da alma (parte 3 de 3)


Ilustração de Igor Oleynikov em The King with horse´s ears and other Irish folktales
História: O rei que tinha orelhas de cavalo

Inspirada num conto da tradição oral irlandesa
Narrativa recontada e adaptada por Fabio Lisboa

Era uma vez um rei tão bonito e bravo quanto um cavalo selvagem. Era o rei Equinus IV do reino de Apparentis, um lugar onde cada pessoa buscava esconder os defeitos para ser, ou melhor, parecer... perfeito.


Equinus se olhava no espelho e via o rei mais bem feito que já houve do mundo, já os súditos olhavam pra ele e viam o rei mais ridículo que já existiu no reino. Era ridículo aquele jeito de nariz empinado e de se vestir empopado. Mais ridículo ainda o seu jeito de tratar os serviçais como um cavalo. E se a rainha ou suas aias pedissem para o rei ser mais gentil, sobrava coices para elas também. Pobres ou nobres não escapavam das patadas de Equinus.

E quem mais sofria com a mania de beleza e rudeza do rei eram os cabelereiros que se descabelavam para tentar atender aos mandos e desmandos da última moda do reino de Apparentis – o que obviamente nunca conseguiam.


O rei desconhecia palavras mágicas como “por favor” e “obrigado” e o pagamento por servi-lo eram  insultos. Num dia era assim:

- O seu salão devia se chamar Três Irmãos! – esbravejava Equinus.
- Por que, meu rei?
- Porque um irmão corta o cabelo e os outros dois seguram o cliente na cadeira pra ele não ir embora.

No outro dia era pior:

- Vossa majestade não gostou do corte?
- Gostei tanto que devia mandar cortar fora a sua cabeça!

E quando todos achavam que Equinus não podia ser mais cavalo, aí é que ele quase se transformou mesmo em um. Foi no dia em que ganhou um espelho mágico, presente da Fada Verdade.

A Verdade iria mostrar que os exteriores do rei de Apparentis enganam. Seu rosto, seu corpo e suas roupas continuavam belas mas ao se olhar no espelho levou um susto:

Equinus tinha orelhas de cavalo! Ele desviou o olhar do espelho, achando que as orelhas desapareceriam junto com aquele seu reflexo ridículo. Mas as orelhas continuavam lá, refletindo quem ele realmente era. Não coube mais nem a coroa em sua cabeça.

Então o rei pensou assim: “Bem, só há um jeito de manter as aparências: arranjando uma coroa maior que esconda as minhas orelhas! E os únicos que saberão o meu segredo serão os cabelereiros que cortarem o meu cabelo.. mas estes, em seguida, terão a cabeça cortada. Desse jeito, ninguém saberá o meu sinistro segredo e continuarei sendo o rei mais lindo do mundo.”

E assim foi. Um a um, os cabelereiros foram perdendo a cabeça de verdade. E a Fada Verdade ficou triste de constatar que se a verdade dói, tentar esconder a verdade dói mais ainda.

Os cabelereiros do reino também tentavam esconder a verdade aposentando as tesouras e dizendo-se sapateiros, cavaleiros ou qualquer outra profissão que não fosse tão arriscada para as suas cabeças. Mas o rei sempre descobria que estavam mentindo. Ao martelarem um sapato deixando a sola esfolada ou empunharem tremulamente uma espada, eram obrigados a cortar o cabelo de Equinus IV e, no momento seguinte, dar adeus à vida. O imperador começou a acusar e condenar até quem não era nem nunca tinha sido cabelereiro, distorcendo e impondo a verdade a seu favor e tornando o seu reino cada vez mais... Apparentis.

Todos se esconderam da verdade a não ser Jonas Tesoura que se apresentou ao rei para cortar a ameaçadora cabeleira escura que se escondia debaixo da coroa de ouro.

- Que milagre, um cabelereiro de verdade por aqui! Você não tem medo de descobrir o meu segredo e morrer por isso? – perguntou Equinus IV, já com um sorriso sádico no rosto.

- Não tenho medo pois sei que ficará tão satisfeito com o seu novo corte de cabelo que vai querer continuar no mesmo estilo real solicitando a minha presença sempre e,  para isso, deixará a minha cabeça grudada no pescoço, vossa majestade.

- Qual o seu nome, insolente?

- Sou Jonas Tesoura, meu rei.

- Pois faça o seu trabalho e este definirá o seu destino. Guardas, retirem-se!

Como sempre, o rei pediu que ficassem a sós, ele e o cabelereiro para que ninguém mais descobrisse o seu embaraçoso e sigiloso mistério equino.

Na sala do monarca, Jonas afiou as tesouras e, na sala de espera, ao lado, os carrascos afiaram os machados.

O rei tirou a coroa e suas orelhas de cavalo pularam pra cima quase batendo no nariz de Jonas que naquele momento examinava a densa cabeleira de perto.

- Hummm, interessante... Quer dizer que é por isso que todos antes de mim perderam a cabeça? – pensou Jonas. “E o pior é que estas orelhas até que combinam com o rei! O difícil vai ser fazê-lo enxergar isso. Bem, a morte pra mim é certa, assim como é para todos. Mas isto acontecerá um dia, de preferência distante. Calma. Não pretendo perder a cabeça antes do tempo.”

Concentrou-se no momento presente para presentear o rei com um corte de cabelo inusitado. Um que não mais tentasse esconder suas orelhas de cavalo e sim que as privilegiasse. Um corte que realçasse a beleza natural de Equinus.

Ele pôs o rei de costas para o espelho para que este não reclamasse antes do fim. Os longos fios ao redor da orelha começaram a ficar curtinhos.

O profissional só parou um pouco antes de finalizar, para amolar a tesoura e, enquanto o amolador fazia um barulhão, aproveitou e cortou também a coroa do rei, sem que este percebesse, deixando dois grandes buracos bem no lugar onde antes as orelhas podiam ficar escondidas.

- Pronto! Terminado, vossa alteza!

O rei odiou. Olhou pra baixo! Não suportou ver a sua ridícula imagem no espelho. Virou de costas, pôs a coroa furada, abriu a porta e chamou os guardas:

- Matem este incompetente.

Os guardas entraram e tomaram um susto ao ver, saindo pela coroa furada, as orelhas de cavalo do rei. Depois ficaram com vontade de rir, pensando: - Então esse é o segredo do rei! Em seguida, disfarçaram a surpresa e o riso e, no fundo no fundo, começaram a temer pela própria vida já que agora eles também sabiam o fatídico mistério real.

- Incompetentes, o que estão aí esperando com estas caras de espanto?

Os guardas fecharam a cara e seguram Jonas pelos braços.

Nesta hora, a rainha entrou na sala e interviu:

- Meu amado imperador, por favor, não mate este homem, ali fora se encontra a mãe dele que clama por sua compaixão, dizendo que o filho é tudo o que ela tem para amar.

- Pois a única coisa que tenho nesta vida para amar é a minha aparência e este rapaz não me ajudou em nada.

- Engano seu, meu senhor, você tem a mim e aos seus súditos para amar e foi este seu súdito Jonas o único que teve a coragem de mostrar a todos a verdade além das aparências e agora você pode amar quem você é - e como é. E a verdade é que vossa majestade até que não fica mal com estas orelhas de cavalo! Pelo menos eu vou continuar te amando assim mesmo – disse a rainha, com um sorrisinho.

Silêncio.

O rei se virou e se olhou no espelho.

Todos também o olharam. Mas não sabiam se riam ou se choravam. Aos poucos sorriram meio sem graça.

O rei caiu na gargalhada. Todos também gargalharam.

- Quer dizer que terei que matar a todos vocês agora?

Todos fecharam a cara.

- Brincadeira! – gargalhou novamente o rei.

E todos sorriram meio sem graça de novo.

- Este homem me ensinou que um dia a verdade sempre aparece. E o melhor, me mostrou que, em vez de tentar esconder as nossas imperfeições a qualquer custo, é melhor rir de si mesmo. Sua vida será poupada. Na verdade, não só ele, mas todos estão perdoados por descobrirem e revelarem o segredo do rei.

- E você, minha rainha, me ensina todos os dias sobre o amor, a gentileza e a compaixão... e quem sabe com estas orelhas mais aparentes eu começo a te escutar melhor! Espero que um dia todos tenham compaixão e me perdoem também pelos males que já fiz tentando esconder quem eu era. Espero que me aceitem como sou hoje com a promessa de tentar ser melhor amanhã.

Quando voltou ao seu quarto, a primeira coisa que fez foi se olhar no espelho mágico da Fada Verdade, aquele que mostra as pessoas como elas realmente são. E o rei estava novamente lindo, sem aquelas orelhas que combinavam com os cavalos mas não com os homens. A partir daquele dia, o castelo do rei e os seus arredores começaram a ser chamados de Reino Veritas, um lugar cheio de erros e acertos mas, acima de tudo, um lugar onde cada pessoa busca a verdadeira beleza de ser humano.

História inspirada num conto da tradição oral irlandesa
Narrativa recontada e adaptada pelo contador de histórias e escritor Fabio Lisboa


Imagem e Referências
The King with horse´s ears and other Irish folktales – by Batt Burns illustrated by Igor Oleynikov – Sterling, New York, 2006. (em inglês)





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Contos de Fadas: espelhos mágicos da alma (parte 2 de 3)


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2 comentários:

Vania Longo disse...

Amei este conto e vou aproveitá-lo na contação que farei para as crianças nesta semana! Contribuição bárbara, Fábio! Obrigada!

Fabio Lisboa disse...

Que bom, Vania! Agradeço o relato e também a sua disponibilidade em escrever um artigo especialmente para o blog abordando como os Contos de Fadas podem auxiliar professor e aluno a superar dificuldades na escola. O seu post estará disponível on-line amanhã, abs,

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