Nos tempos medievais no Japão existiu um
talentoso artista, Mochimitsu, que encantava a todos quando tocava o seu
hichiriki. O músico viajava muito pois sua arte era requisitada pelos clãs dos
quatro cantos do país.
Diziam que quando viajava pelos mares, até as
baleias e aproximavam para ouvir melhor a arte de Mochimitsu. Acontece que
quando estava em Aki prestes a partir rumo à província de Tosa o navio em que
estava foi saqueado por piratas sanguinários. E a embarcação não contava com
nenhum samurai para defender os tripulantes.
O artista nunca havia manejado uma katana e,
indefeso, percebeu que a morte se aproximava pela fria lâmina dos piratas que
decepavam cabeças. Mochimitsu se refugiou não com uma espada mas com seu
instrumento de sopro no alto da cabine. De lá decidiu dizer adeus à vida assim:
"Ei, piratas, me escutem: estou indefeso, como podem ver. Peguem o
que quiserem do nosso navio. Mas eu gostaria que ouvissem esta peça musical
tocada com meu hichiriki. Eu tenho trabalhado nela há anos. Será algo que nunca
irão esquecer."
E o líder dos piratas gritou assim: "Certo, piratas, vamos ouvir um pouco
de música."
E Mochimitsu pegou seu hichiriki
totalmente concentrado, sabendo que aquela seria a última vez que faria o que
mais amava. Começou a soprar a sagrada flauta de bambu com toda a sua paixão
humana. A sua canção entrou na alma de cada um dos presentes.
Em cada nota musical, o artista colocava a sua
alma. Por alguns momentos foi como se as almas de artista e ouvintes se
tocassem e o tempo parasse. O vento parou de ventar, os peixes de nadar, as
baleias de cantar e todos apenas a ouvir. Era como se aquela melodia
contasse uma história de vida e de morte. Uma história de encontros e
desencontros; partidas e chegadas. Uma história de todos que atravessa o tempo
e o espaço.
Quando enfim, o som do hichiriki silenciou,
era possível ouvir o som da maré indo e vindo de encontro ao casco duro do
navio. Era possível também enxergar os olhos marejados e os sentimentos
enternecidos de muitos indo de encontro a corações secos e endurecidos.
O silêncio foi interrompido com a voz do líder
dos piratas:
"Viemos aqui para levar este navio e tirar a vida de todos à bordo.
Mas a sua música fez aparecer lágrimas nos meus olhos. Agora que conheço a sua
música é como se nos conhecêssemos há tempos. Seria impossível matar vocês
agora. Vamos embora."
E os piratas se foram, mas a história ficou
para ser lembrada.
Assim, a aventura desse artista, que viveu por
volta do ano 1250, ainda é contada, quase 800 anos depois... uma prova viva de
que a arte e a escuta ainda podem nos unir, e nos salvar.
Referências
Conto recolhido e recontado na língua inglesa
por Royall Tyler - Japanese Tales, Pantheon E Books, 1987.
Imagem:
Barco japonês usado no comércio asiático (1634, artista desconhecido) http://en.wikipedia.org/wiki/William_Adams_(sailor)
O (re)conto
Esta narrativa é chamada de setsuwa - conto
curto que é narrado como sendo verdadeiro e que traz em si algum
ensinamento. Encontra-se no texto medieval Jikkinshō. Trata-se de uma
versão bem curta e ao recontá-la optei por inserir detalhes e reflexões.
O instrumento
Hichiriki é uma flauta feita de bambu cuja
sonoridade e modo de tocar é comparado ao Oboé das orquestras ocidentais. O
hichiriki é o principal instrumento musical usado em cerimônias de casamento
shintoísta.
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