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História: A bolsa perdida



Recontada por Fabio Lisboa

Uma bolsa perdida, caída no canto da estrada.

- “Achado não é roubado”! E este achado deve ter caído de uma rica carruagem – pensou o homem pobre que andava pela estrada. O homem, que se chamava “João”, e não levava com ele nada além do sobrenome “Ninguém da Silva”, e ia à busca de emprego na cidade, desviou em direção ao objeto cintilante e, ao se aproximar, percebeu que nunca tinha visto uma bolsa tão maravilhosa.

João ficou mais maravilhado ainda quando a abriu. Não era um porta-treco ordinário, além de ser, por fora, reluzente, por dentro, guardava moedas de ouro!


O homem simples nunca tinha visto tanta riqueza junto. Nem em sonho!

No primeiro momento, foi logo sonhando como seria bom guardar com ele a bolsa, assim, com aquela fortuna, nunca mais passaria necessidade... Para ele, o achado mudaria a sua vida... para quem o perdeu, talvez nem fizesse falta... e ele não estaria fazendo mal a ninguém, afinal, lembrou de novo do ditado: “achado não é roubado”!


No momento seguinte, foi logo acordando que o ditado era só uma desculpa para ficar com um achado que não era seu. Preferia ser “pobre, porém honrado”! Contou as moedas: eram cem! Iria até a cidade procurar o verdadeiro dono da bolsa perdida.


Não precisou procurar muito. Chegando a frente do primeiro poste da cidade, já encontrou um cartaz dizendo assim:

PERDEU-SE BOLSA COM MOEDAS DE OURO!
RECOMPENSA A QUEM A ENCONTRAR!
DIRIJA-SE À RUA MESQUINHO DE FREITAS, 171.
FALAR COM O SR. AVARO COBIÇOSO.

A pé, João atravessou a cidade carregando a pesada bolsa, foi seguindo pela cumprida Avenida Sovinas de Souza, cruzando a Rua Rica Varenta, até chegar, enfim, à Mesquinho de Freitas, 171.


Um ornado portão impedia a sua passagem, o latido infernal de cães bravos anunciou a sua chegada e um criado mal humorado anunciou a presença de um tal suado e mal vestido João-Ninguém. O Sr. Avaro não quis saber, nem pão velho o pão duro dava aos pobres muito menos hoje que havia perdido sua bolsa com 100 moedas de ouro e não tinha a menor esperança de reencontrá-la.

Que o criado mandasse o sujeito embora logo, soltando os cachorros em cima do maldito maltrapilho!

- Senhor: retire-se já! O Sr. Avaro não receberá visitas hoje e muito menos doará  aos pobres, aliás, isso, nem hoje, nem nunca – disse o criado, esforçando-se para segurar pela coleira dois cães sanguinários.

- Ele não me atenderá? Nem se eu tiver trazido uma bolsa perdida...

Os olhos do criado se arregalaram, reconhecendo a bolsa do patrão: - Bem, neste caso, espere mais um pouco, senhor, certamente o Sr. Avaro reconsiderará.

Ao saber o que o homem pobre carregava nas mãos, o homem rico mandou prender os cães (e o criado) e chegou esbaforido ao portão, dizendo:

- Perdoe este criado malcriado, eu sempre recebo visitas - ainda mais as que vem com algo na mão para mim, principalmente com a minha bolsa perdida cheia de moedas de ouro, certo?

- Sim, acho que isto te pertence...

Avaro abriu o portão e pegou a sua bolsa tão rápido quanto começou a contar se todas as moedas estavam lá. Ele tinha certeza que o maltrapilho tinha roubado muitas!

Inacreditavelmente estavam todas lá! Que tolo – pensou Avaro! João esperava pacientemente, afinal, logo o homem rico o mandaria entrar e, enfim, uma boa recompensa e um copo de água naquele momento seriam perfeitos.

Cobiçoso pensou diferente: Por que este tolo não vai embora logo agora que já me deu a minha bolsa intacta? Ah, talvez ele tenha feito um plano, pensando que se devolvesse tudo teria uma recompensa, como escrevi no cartaz... se deu mal...

- O que está esperando ainda aqui dentro, saia da minha casa agora!

- Rã, nossa, senhor, nem um “obrigado”?

- Insolente, saia já!

-Não poso te obrigar a dizer obrigado, mas, rã, senhor, o cartaz falava em uma recompensa...

- Recompensa? Sim, o cartaz dizia recompensa a quem ENCONTRAR a bolsa, não a quem DEVOLVER!

- Ã?

- Ora, quem encontrasse a bolsa, se fosse esperto, teria ficado com todas ou pelo menos algumas moedas, já que “achado não é roubado”! Mas você foi bobo e devolveu tudo!

- Senhor, prefiro ser “pobre porém...

- E tem mais: se você TIVESSE devolvido TUDO, vá lá, mas nesta bolsa tinha DUZENTOS MOEDAS e você devolveu apenas CEM!

- Não senhor, eu devolvi todas que encontrei, você acabou de dizer que fui bobo porque devolvi tudo e sabe que estou dizendo a verdade!

- O que importa? Pois eu vou chamar as autoridades e vamos ver em quem eles vão acreditar: num respeitoso e digno homem como eu ou num maltrapilho mentiroso como você!

- Mas senhor, eu insisto que a justiça seja...

- Não quero saber, soltem os cachorros em cima deste mentiroso!

E veio o criado saindo do canil junto com os cachorros loucos, tentando segurar a eles e ao Cobiçoso, uns latindo mais do que os outros, quase em cima de João que não arredava pé e chamava os vizinhos para desmascararem o verdadeiro ladrão, e enfim, a confusão foi tanta que foram parar os dois, a dialogar cara a cara, com a voz da justiça.

Acontece que naqueles tempos, as disputas não eram resolvidas por juízes que conheciam apenas as leis mas sim juízes que conheciam os homens. Eram pessoas mais velhas (sem preconceitos sobre os jovens), sábias (sem preconceitos intelectuais), espiritualizadas (sem preconceitos religiosos). Estes juízes ou juízas ouviam os dois lados de uma história sem deixar as aparências das vestimentas e nem mesmo as vestimentas das palavras falarem mais alto do que a justiça.

E a juíza deste caso percebeu que era João quem carregava a palavra da verdade.

E a sua sentença foi justa:

- Sr. Avaro Cobiçoso, confirma que, em sua bolsa perdida, havia 200 moedas de ouro?

- Sim.

- Sr. João Ninguém da Silva, confirma que achou esta bolsa com 100 moedas de ouro?

- Sim.

- Pois então, está claro que a bolsa perdida por Cobiçoso não se trata da mesma bolsa achada por Ninguém. Portanto: Avaro, devolva a bolsa a João e suas 100 moedas de ouro!

No fim das contas, Ninguém achou a bolsa perdida e ninguém reclamou do seu achado, já que o golpe do reclamante Cobiçoso deu errado. Logo, neste caso, “achado não foi roubado”, muito pelo contrário, pela mesma pessoa, a fortuna foi achada, devolvida e reencontrada.

  
Referência
Conto da tradição oral judaica recontado por Fabio Lisboa a partir da versão de Oro Anahory-Librowicz, ouvida durante o Boca do Céu 2012. Na versão da contadora de histórias canadense, especialista na tradição judaica ladina, o juiz é um rabino. No reconto, optei por criar um juiz laico.

Imagens

Bolsa antiga costurada a mão: http://brechomaravilha.blogspot.com.br/2009/02/bolsa-antiga-toda-costurada-mao.html

Fancy Gate Latch by Wickamoo: http://www.flickr.com/photos/8762386@N05/1171318153/

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Ao (re)contar histórias também doamos às histórias (e aos ouvintes ou leitores) o nosso tempo, o nosso trabalho intelectual e sentimental. Um dia, talvez, sejamos recompensados, ouvindo a nossa história reformulada pela palavra de quem a (re)conta e que, assim, nossa fortuna seja sempre achada, recontada e reencontrada.

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