Inspirado no Conto “O Suave Milagre” de Eça de Queirós
e trechos selecionados da Bíblia Sagrada
No tempo
em que Jesus andou pela terra muitos o procuraram, nem todos o encontraram.
O
andarilho chegou faminto à próspera Enganim, cidade que na língua hebraica
significa “nascente de jardins”. Em busca de trabalho em troca de algum denário,
abrigo e comida, foi direto à propriedade do famoso senhor fazendeiro Obede.
Acontece
que as terras de Obede ressecaram tanto quanto o seu coração. O velho rico não
queria mais saber de gastos. Ofereceu apenas comida e uma cama de palha junto
aos animais em troca dos serviços de sol-a-sol do pobre viajante.
Na falta
de coisa melhor, este aceitou. No fim das contas, a chegada do andarilho foi
providencial para Obede. Ele precisaria dos serviços do homem já que no dia
seguinte enviaria metade de seus empregados para longe para uma importante
tarefa. Obede soube da fama de um rabi nazareno que fez milagres na Galileia e
que agora estava na Judeia, em Jericó.
O nome do
rabi era Jesus. Disseram que em Betesaida tinha alimentado milhares,
transformando uns poucos pães e peixes em centenas. Com certeza, por uma boa quantia
de denários e ouro, Jesus virá até mim e fará minhas terras férteis e meus
animais saudáveis novamente – pensava Obede.
Então,
enviou seus homens com a incumbência de trazer o mestre chamado Jesus até a sua
propriedade em Enganim, na Judeia, advertindo: - Não descansem até encontrar e
trazer o santo homem!
Eis que
partiram rumo ao norte, pelo menos três dezenas de empregados de Obede. Por
onde passavam, ouviam sobre as palavras de ensinamento e alguma coisa incrível
que Jesus de Nazaré havia feito.
Caminhando
em direção à Samaria, chegaram à Jericó, onde conheceram a história de um homem
cego que agora enxergava. Conheceram pessoas que tinham presenciado o milagre e
tentavam entender as palavras do Mestre:
Ninguém
acende uma lâmpada e a põe em lugar oculto ou debaixo da cama, mas sobre um
candeeiro, para iluminar os que entram.
O olho é a lâmpada do
corpo. Se teu olho é são, todo o corpo será bem iluminado; se, porém, ver em
mau estado, o teu corpo estará em trevas.
Vê, pois, que a luz
que está em ti não sejam trevas. Se, pois, todo o teu corpo estiver na luz, sem
mistura de trevas, ele será inteiramente iluminado, como sob a brilhante luz de
uma lâmpada.[1]
Mas os
empregados de Obede só viram o rastro de luz deixado pelas palavras de Jesus pois
ele mesmo agora batizava no rio Jordão.
Os
serviçais dedicados caminharam por toda a extensão do rio, apenas para
descobrir que o Nazareno havia voltado para a região próxima à sua terra natal,
Belém, na Galileia.
Novamente,
as sandálias de palha dos empregados foram postas à caminhar atravessando as
areias da Samaria, vencendo as pedras do Monte Tabor e finalmente avistando o
Lago da Galileia.
Lá,
conheceram os que tinham sido alimentados pela parábola do semeador, mas não
conheceram o autor da palavra.
Os
seguidores de Obede não conseguiram de fato entender as palavras nem tampouco
entenderam porque passaram por Betesaida, desceram pelo Vale Huleh e quase
chegaram a Síria sem encontrar um sinal de Jesus, enquanto este estava agora do
outro lado do lago da Galileia, em Magdala, onde os fariseus o intimavam a
mostrar um sinal dos céus.
Todavia,
os homens que se achavam os únicos conhecedores das leis de Deus conseguiam ver
apenas se o céu estava nublado ou limpo, se o dia seria ensolarado ou chuvoso,
mas não entenderam os sinais de um céu eterno na terra, pois não acreditavam
ser possível fazer parte da eternidade ainda em vida.
Também os
homens de Obede não mais acreditavam que um dia veriam a luz eterna de Jesus de
perto. Voltaram, com pensamentos obscurecidos por sua falha, olhando para
baixo, cruzando caminhos desérticos, arrastando o que restava de suas sandálias
de palha até Enganim.
No dia em
que voltaram, exaustos, os empregados de Obede contaram suas desventuras a
todos, então, no dia seguinte, partiu, pela estradas de Bete-Semes, o andarilho,
disposto a encontrar Jesus Cristo.
Ao
desbravar a região selvagem da Judeia, cruzou com uma centúria de soldados
romanos já exauridos após uma longa jornada vindos do noroeste, da distante
Cesareia.
O
andarilho acompanhou os legionários até um bom lugar para montarem um
acampamento, ouviu o motivo de sua empreitada e sobre o que viveram desde
então.
Faziam
parte da Legião de Públio Septimo, poderoso general da Cesareia que os incumbira
de uma missão: trazer o profeta Jesus, a quem muitos acreditavam ser o Messias,
até a Cesareia para salvar a filha do general.
A moça já
não se levantava mais da cama e agonizava de uma doença inexplicável e
incurável, segundo os melhores médicos romanos, samaritanos e fenícios que,
trazidos para curá-la, voltavam para seus países desesperançados.
Mas o
amor de um pai nunca perde as esperanças. O pai da moça, general Públio
Séptimo, já sabia que o tal messias dos judeus curava até os incuráveis, sabia
que o santo rabi havia sarado a pele de um leproso na Galileia e a perna de um
paraplégico em Cafarnaum.
Então,
certamente este profeta teria poder para salvar a sua filhinha. Já que o rabi
pregava que deveríamos amar até os inimigos, os soldados deveriam intimar Jesus
à ir com eles. Caso não aceitasse, deveriam trazê-lo à força.
Porém,
por onde passavam os soldados só achavam pessoas cujo coração tinha sido tocado
pelas palavras e atitudes de Jesus, mas nunca toparam com o Mestre
frente-a-frente.
Na
Betânia, conheceram até a história de Lázaro, a quem Jesus, em Cafarnaum,
movido pela compaixão de uma mãe, havia ressuscitado dentre os mortos. Não
acreditaram nesta história mas, em todo o caso, calçaram novamente as suas
sandálias de couro e marcharam em direção ao norte com destino a Cafarnaum.
Já haviam
marchado por meses quando chegaram a Cafarnaum. Lá souberam que um centurião,
cujo estimado servo estava morrendo, pediu que dissessem a Jesus:
Senhor, não te incomode; porque não sou
digno de que entreis em minha morada; dizei, porém, uma palavra, e o meu
servo estará curado.[3]
O
centurião acreditou sem precisar de sinais. E o seu servo se recuperou e ficou
são. Mas os legionários de Públio Séptimo não acreditaram naquelas palavras nem
encontraram sinais de Jesus Cristo em pessoa. Com as sandálias de couro já
esburacadas, marcharam de volta a Cesareia, arrastando os pés e prontos a
sofrer as represálias do general por terem falhado em sua missão.
Ora,
entre a Cesareia e Enganim, o andarilho errava pela desolada região entre a
Judeia e a Samaria onde encontrou um casebre perdido e lá moravam uma viúva e
seu filho doente.
O
viajante levava com ele o seu último pão e esperança. Esperança de encontrar generosidade
numa refeição mais substanciosa e quem sabe até uma cama quente para pernoitar.
No
entanto, conforme foi chegando perto da habitação, percebeu que se tratava de
um cortiço. Não havia criação de animais (com exceção de um cão esquálido e
silencioso que talvez um dia latisse para estranhos) nem tampouco havia
plantações (com exceção de esparsas árvores que talvez um dia tivessem sido
frutíferas das quais restava apenas galhos secos e retorcidos).
Bateu na
porta, foi recebido por um velha que se arrastava com a ajuda de uma bengala.
Ao
entrar, reparou que a desolação ali dentro era ainda maior do que a de fora.
O homem
ouviu a velha. Notou que a pobre mulher não era tão velha, mas as rugas de
preocupação e de desgosto tinham desfigurado o seu rosto. Depois de matarem seu
marido, os soldados queimaram suas plantações, mataram seus animais e ela não
teve mais forças de recuperar a fertilidade da terra nem de fazer retroceder a
doença do filho.
O menino
tinha sete anos e sofria de um mal degenerativo. Os médicos disseram que a
criança morreria antes do tempo. Nunca chegaria a idade adulta. A ordem das coisas seria invertida e a mãe
veria seu filhinho gradualmente partir.
De fato,
o menino fora aos poucos perdendo os movimentos do corpo. Já tinha dificuldade
até para falar e respirar. Era alimentado pela mãe que, naquela tarde havia,
como nas semanas anteriores e por falta de qualquer outro recurso, cozinhado
uma rala sopa feita de raízes e ervas daninhas do seu quintal. A moradora
dividiu sua sopa com o viajante andarilho.
O andarilho
compartilhou com mãe e filho o seu pão – e as suas histórias.
Falou da
esperança de um rabi salvador que andava ora pela Judeia, ora pela Galileia -
os dois que ouviam atentamente nunca haviam ouvido falar de uma pessoa assim
tão poderosa e, ao mesmo tempo, humilde e bondosa.
Um
verdadeiro Mestre que ensinava o que era, de fato, amar o próximo; que tocava
os leprosos; que não julgava nem condenava os pecadores; que falava de
igualdade entre sírios, romanos, samaritanos e judeus; que curava os
incuráveis; que defendia os pobres; que contava lindas histórias... que amava as
crianças.
Mãe e
filho ouviam sobre o doce Jesus com olhos sedentos por luz e ouvidos famintos
por mais histórias.
Quando a
palavra do viajante silenciou, pela primeira vez, ele ouviu a voz fraca do
menino:
- Eu
queria ver Jesus.
Então o
homem contou das buscas ao Cristo empreendidas em vão pelas dezenas de
empregados de Obede e pelas centenas de legionários de Públio Séptimo.
Ele
mesmo, que percorria aquelas terras de norte a sul, de leste a oeste, do nascer
ao por do sol, nunca havia deparado com o rabi.
O menino
olhou para a mãe:
- Mãe, eu
queria ver Jesus. Busca ele pra mim.
- Ai,
filho, ai de mim. Uma velha de bengala saindo por aí pela estrada, sem saber
aonde procurar o tal Jesus Cristo. E você não ouviu esse senhor lhe contar? Se
o mais rico homem de Enganim com dezenas de homens e o general mais poderoso da
Cesareia com uma centena não conseguiram, como a sua mãezinha, sozinha, iria
conseguir?
Os olhos
do menino entristeceram.
- Ai
filho, e como eu te deixaria aqui sem ninguém pra cuidar de ti?
O menino
tentou sorrir com os olhos:
- Então
vamos juntos, mamãe.
- Ô,
filhinho, bem que queria ir atrás desse fio de esperança com você, mas nesta
vida nos cabe sofrer sozinhos a nossa dor.
- Ai, mãe, Jesus ama as criancinhas e eu só
queria ver...
A voz e
os pulmões fracos do menino já não conseguiam acompanhar o desejo do seu
coração...
-...
Jesus...
O andarilho
ficou com um nó na garganta, a mãe tentou esconder o choro enquanto abraçava o
filho.
O menino
levantou debilmente o braço direito. Respirava com dificuldade, mas continuou
com os olhos esperançosos e, se o seu pulmão e as cordas vocais não tiveram
mais condições de dizer, o seu pensamento continuou dizendo com força:
“Eu
queria ver Jesus!”.
E a porta
do casebre se abriu, uma luz invadiu o coração dos três que ali estavam quando
olharam para Jesus que disse:
- Aqui
estou.
Inspirado no Conto “O Suave Milagre” de Eça de Queirós
e trechos selecionados da Bíblia Sagrada
Referências
O Suave
Milagre de Eça de Queirós (1845-1900) in Contos de Natal / Seleção, organização
e apresentação Vilma Maria da Silva – São Paulo: Editora Landy, 2006.
Conto
original na íntegra:
Bíblia Sagrada
(ver notas abaixo).
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