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Conto de Natal: O Suave Milagre



 
Recontado por  Fabio Lisboa
Inspirado no Conto “O Suave Milagre” de Eça de Queirós
e trechos selecionados da Bíblia Sagrada

No tempo em que Jesus andou pela terra muitos o procuraram, nem todos o encontraram.

O andarilho chegou faminto à próspera Enganim, cidade que na língua hebraica significa “nascente de jardins”. Em busca de trabalho em troca de algum denário, abrigo e comida, foi direto à propriedade do famoso senhor fazendeiro Obede.

Acontece que as terras de Obede ressecaram tanto quanto o seu coração. O velho rico não queria mais saber de gastos. Ofereceu apenas comida e uma cama de palha junto aos animais em troca dos serviços de sol-a-sol do pobre viajante.


Na falta de coisa melhor, este aceitou. No fim das contas, a chegada do andarilho foi providencial para Obede. Ele precisaria dos serviços do homem já que no dia seguinte enviaria metade de seus empregados para longe para uma importante tarefa. Obede soube da fama de um rabi nazareno que fez milagres na Galileia e que agora estava na Judeia, em Jericó.

O nome do rabi era Jesus. Disseram que em Betesaida tinha alimentado milhares, transformando uns poucos pães e peixes em centenas. Com certeza, por uma boa quantia de denários e ouro, Jesus virá até mim e fará minhas terras férteis e meus animais saudáveis novamente – pensava Obede.

Então, enviou seus homens com a incumbência de trazer o mestre chamado Jesus até a sua propriedade em Enganim, na Judeia, advertindo: - Não descansem até encontrar e trazer o santo homem!

Eis que partiram rumo ao norte, pelo menos três dezenas de empregados de Obede. Por onde passavam, ouviam sobre as palavras de ensinamento e alguma coisa incrível que Jesus de Nazaré havia feito.

Caminhando em direção à Samaria, chegaram à Jericó, onde conheceram a história de um homem cego que agora enxergava. Conheceram pessoas que tinham presenciado o milagre e tentavam entender as palavras do Mestre:

Ninguém acende uma lâmpada e a põe em lugar oculto ou debaixo da cama, mas sobre um candeeiro, para iluminar os que entram.

O olho é a lâmpada do corpo. Se teu olho é são, todo o corpo será bem iluminado; se, porém, ver em mau estado, o teu corpo estará em trevas.

Vê, pois, que a luz que está em ti não sejam trevas. Se, pois, todo o teu corpo estiver na luz, sem mistura de trevas, ele será inteiramente iluminado, como sob a brilhante luz de uma lâmpada.[1]

Mas os empregados de Obede só viram o rastro de luz deixado pelas palavras de Jesus pois ele mesmo agora batizava no rio Jordão.

Os serviçais dedicados caminharam por toda a extensão do rio, apenas para descobrir que o Nazareno havia voltado para a região próxima à sua terra natal, Belém, na Galileia.

Novamente, as sandálias de palha dos empregados foram postas à caminhar atravessando as areias da Samaria, vencendo as pedras do Monte Tabor e finalmente avistando o Lago da Galileia.

Lá, conheceram os que tinham sido alimentados pela parábola do semeador, mas não conheceram o autor da palavra.

Ouvindo, ouvireis, mas não entendereis; e, vendo, vereis, mas não percebereis.[2]

Os seguidores de Obede não conseguiram de fato entender as palavras nem tampouco entenderam porque passaram por Betesaida, desceram pelo Vale Huleh e quase chegaram a Síria sem encontrar um sinal de Jesus, enquanto este estava agora do outro lado do lago da Galileia, em Magdala, onde os fariseus o intimavam a mostrar um sinal dos céus.

Todavia, os homens que se achavam os únicos conhecedores das leis de Deus conseguiam ver apenas se o céu estava nublado ou limpo, se o dia seria ensolarado ou chuvoso, mas não entenderam os sinais de um céu eterno na terra, pois não acreditavam ser possível fazer parte da eternidade ainda em vida.

Também os homens de Obede não mais acreditavam que um dia veriam a luz eterna de Jesus de perto. Voltaram, com pensamentos obscurecidos por sua falha, olhando para baixo, cruzando caminhos desérticos, arrastando o que restava de suas sandálias de palha até Enganim.
  
No dia em que voltaram, exaustos, os empregados de Obede contaram suas desventuras a todos, então, no dia seguinte, partiu, pela estradas de Bete-Semes, o andarilho, disposto a encontrar Jesus Cristo.

Ao desbravar a região selvagem da Judeia, cruzou com uma centúria de soldados romanos já exauridos após uma longa jornada vindos do noroeste, da distante Cesareia.

O andarilho acompanhou os legionários até um bom lugar para montarem um acampamento, ouviu o motivo de sua empreitada e sobre o que viveram desde então.

Faziam parte da Legião de Públio Septimo, poderoso general da Cesareia que os incumbira de uma missão: trazer o profeta Jesus, a quem muitos acreditavam ser o Messias, até a Cesareia para salvar a filha do general.

A moça já não se levantava mais da cama e agonizava de uma doença inexplicável e incurável, segundo os melhores médicos romanos, samaritanos e fenícios que, trazidos para curá-la, voltavam para seus países desesperançados.

Mas o amor de um pai nunca perde as esperanças. O pai da moça, general Públio Séptimo, já sabia que o tal messias dos judeus curava até os incuráveis, sabia que o santo rabi havia sarado a pele de um leproso na Galileia e a perna de um paraplégico em Cafarnaum.

Então, certamente este profeta teria poder para salvar a sua filhinha. Já que o rabi pregava que deveríamos amar até os inimigos, os soldados deveriam intimar Jesus à ir com eles. Caso não aceitasse, deveriam trazê-lo à força.

Porém, por onde passavam os soldados só achavam pessoas cujo coração tinha sido tocado pelas palavras e atitudes de Jesus, mas nunca toparam com o Mestre frente-a-frente.

Na Betânia, conheceram até a história de Lázaro, a quem Jesus, em Cafarnaum, movido pela compaixão de uma mãe, havia ressuscitado dentre os mortos. Não acreditaram nesta história mas, em todo o caso, calçaram novamente as suas sandálias de couro e marcharam em direção ao norte com destino a Cafarnaum.

Já haviam marchado por meses quando chegaram a Cafarnaum. Lá souberam que um centurião, cujo estimado servo estava morrendo, pediu que dissessem a Jesus:

Senhor, não te incomode; porque não sou digno de que entreis em minha morada; dizei, porém, uma palavra, e o meu servo estará curado.[3]

O centurião acreditou sem precisar de sinais. E o seu servo se recuperou e ficou são. Mas os legionários de Públio Séptimo não acreditaram naquelas palavras nem encontraram sinais de Jesus Cristo em pessoa. Com as sandálias de couro já esburacadas, marcharam de volta a Cesareia, arrastando os pés e prontos a sofrer as represálias do general por terem falhado em sua missão.

Ora, entre a Cesareia e Enganim, o andarilho errava pela desolada região entre a Judeia e a Samaria onde encontrou um casebre perdido e lá moravam uma viúva e seu filho doente.

O viajante levava com ele o seu último pão e esperança. Esperança de encontrar generosidade numa refeição mais substanciosa e quem sabe até uma cama quente para pernoitar.

No entanto, conforme foi chegando perto da habitação, percebeu que se tratava de um cortiço. Não havia criação de animais (com exceção de um cão esquálido e silencioso que talvez um dia latisse para estranhos) nem tampouco havia plantações (com exceção de esparsas árvores que talvez um dia tivessem sido frutíferas das quais restava apenas galhos secos e retorcidos).

Bateu na porta, foi recebido por um velha que se arrastava com a ajuda de uma bengala.

Ao entrar, reparou que a desolação ali dentro era ainda maior do que a de fora.
O homem ouviu a velha. Notou que a pobre mulher não era tão velha, mas as rugas de preocupação e de desgosto tinham desfigurado o seu rosto. Depois de matarem seu marido, os soldados queimaram suas plantações, mataram seus animais e ela não teve mais forças de recuperar a fertilidade da terra nem de fazer retroceder a doença do filho.

O menino tinha sete anos e sofria de um mal degenerativo. Os médicos disseram que a criança morreria antes do tempo. Nunca chegaria a idade adulta.  A ordem das coisas seria invertida e a mãe veria seu filhinho gradualmente partir.

De fato, o menino fora aos poucos perdendo os movimentos do corpo. Já tinha dificuldade até para falar e respirar. Era alimentado pela mãe que, naquela tarde havia, como nas semanas anteriores e por falta de qualquer outro recurso, cozinhado uma rala sopa feita de raízes e ervas daninhas do seu quintal. A moradora dividiu sua sopa com o viajante andarilho.

O andarilho compartilhou com mãe e filho o seu pão – e as suas histórias.

Falou da esperança de um rabi salvador que andava ora pela Judeia, ora pela Galileia - os dois que ouviam atentamente nunca haviam ouvido falar de uma pessoa assim tão poderosa e, ao mesmo tempo, humilde e bondosa.

Um verdadeiro Mestre que ensinava o que era, de fato, amar o próximo; que tocava os leprosos; que não julgava nem condenava os pecadores; que falava de igualdade entre sírios, romanos, samaritanos e judeus; que curava os incuráveis; que defendia os pobres; que contava lindas histórias... que amava as crianças.

Mãe e filho ouviam sobre o doce Jesus com olhos sedentos por luz e ouvidos famintos por mais histórias.

Quando a palavra do viajante silenciou, pela primeira vez, ele ouviu a voz fraca do menino:

- Eu queria ver Jesus.

Então o homem contou das buscas ao Cristo empreendidas em vão pelas dezenas de empregados de Obede e pelas centenas de legionários de Públio Séptimo.

Ele mesmo, que percorria aquelas terras de norte a sul, de leste a oeste, do nascer ao por do sol, nunca havia deparado com o rabi.

O menino olhou para a mãe:

- Mãe, eu queria ver Jesus. Busca ele pra mim.

- Ai, filho, ai de mim. Uma velha de bengala saindo por aí pela estrada, sem saber aonde procurar o tal Jesus Cristo. E você não ouviu esse senhor lhe contar? Se o mais rico homem de Enganim com dezenas de homens e o general mais poderoso da Cesareia com uma centena não conseguiram, como a sua mãezinha, sozinha, iria conseguir?

Os olhos do menino entristeceram.

- Ai filho, e como eu te deixaria aqui sem ninguém pra cuidar de ti?

O menino tentou sorrir com os olhos:

- Então vamos juntos, mamãe.

- Ô, filhinho, bem que queria ir atrás desse fio de esperança com você, mas nesta vida nos cabe sofrer sozinhos a nossa dor.

 - Ai, mãe, Jesus ama as criancinhas e eu só queria ver...

A voz e os pulmões fracos do menino já não conseguiam acompanhar o desejo do seu coração...

-... Jesus...

O andarilho ficou com um nó na garganta, a mãe tentou esconder o choro enquanto abraçava o filho.

O menino levantou debilmente o braço direito. Respirava com dificuldade, mas continuou com os olhos esperançosos e, se o seu pulmão e as cordas vocais não tiveram mais condições de dizer, o seu pensamento continuou dizendo com força:

“Eu queria ver Jesus!”.

E a porta do casebre se abriu, uma luz invadiu o coração dos três que ali estavam quando olharam para Jesus que disse:

- Aqui estou.


Recontado por  Fabio Lisboa
Inspirado no Conto “O Suave Milagre” de Eça de Queirós
e trechos selecionados da Bíblia Sagrada

Referências
O Suave Milagre de Eça de Queirós (1845-1900) in Contos de Natal / Seleção, organização e apresentação Vilma Maria da Silva – São Paulo: Editora Landy, 2006.

Conto original na íntegra:

Bíblia Sagrada (ver notas abaixo).

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[1] Lucas, 11: 33-36.
[2] Mateus, 13:14.
[3] Lucas, 7:6-7.

1 comentários:

Anônimo disse...

ADOREI! OBRIGADA PELAS POSTAGENS

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