O que o “Português Brasileiro” tem a ver com a língua Tupi? O que a literatura infantil tem a ver com a descoberta de significados? O que a recuperação do Rio Tietê tem a ver com a recuperação de seu real significado?
Os seis elementos destas 3 perguntas estão interligados. O Brasil é a única ex-colônia que fala Português sem o sotaque Português. E isto se deve, em grande medida, a influência do nheengatú (tupi). No artigo “O idioma brasileiro”, o jornalista Eduardo Fonseca (http://www.zbi.vilabol.uol.com.br/Oidiomabrasileiro.html) ressalta que as línguas africanas nos deram verbetes com os quais nos expressamos na forma espiritual, na culinária, no lazer e em gírias: Bunda, xodó, gogó, tijolo, zureta, muvuca, maluco etc... As línguas indígenas, em especial o Tupi, incorporaram ao Português verbetes que nos clareiam, até hoje, o sentido locativo e toponímico, fauna e flora: Tatuapé, Maracanã, Ipiranga, Anhangabaú (e boa parte dos estados e rios brasileiros), jacaré, tatu, garça, guará, samambaia, jequitibá etc... O Português nos deu verbetes que nos fornecem condições jurídicas, políticas e didáticas. Além destas duas grandes influências, das línguas africanas e indígenas, o português de hoje também recebeu vocábulos trazidos pela fala dos imigrantes de diversas partes do mundo, em especial, da Europa.
Quer saibamos ou não, ao falar o português brasileiro, falamos muitas coisas em Tupi (e de muitas outras línguas indígenas). Essa é a primeira coisa que surpreende o menino Giovani, personagem do livro Curumim Poranga, de Neli Guiguer. Giovani é um menino de dez anos que estava interessado em aprender a língua tupi. Em uma sala de bate-papo da internet, procurou por um indígena. Conheceu Curumim Poranga, descendente de índios, que lhe revelou um segredo: ele, Giovani, já falava tupi. Tão espantado quanto Giovani, o leitor de Curumim Poranga pode ficar, ao descobrir a poderosa influência do tupi no português falado no Brasil. Por exemplo, se alguém lhe contar que foi ao Ibirapuera, viu capivaras correndo e taturanas no Jequitibá, brincou de Peteca e comeu mingau, todos os nomes usados vieram do Tupi.
A autora, pesquisadora e colaboradora para a preservação da cultura indígena, Neli Guiguer, dá uma lista de palavras e expressões oriundas do tupi que nomeiam os lugares, a fauna e a flora do Brasil. Na verdade, sua obra é o fio condutor para uma reflexão sobre a identidade do povo brasileiro - mesmo sendo resultado de uma mistura de etnias, não podemos nos esquecer de que os verdadeiros descobridores deste solo-mãe foram os indígenas. A boa literatura infantil faz o leitor - criança, jovem ou adulto - refletir sobre quem realmente é. Ao descobrir quem somos, de onde viemos, caminhamos para uma descoberta do significado de nossa existência. Desvendar um pouco do mistério da existência das coisas ao nosso redor, das profundezas dos significados das palavras fazem parte da eterna jornada de leitores, narradores e ouvintes.
As ilustrações de Fernando Vilela acompanham o tom jovial que a autora imprimiu ao texto e derrubam o estereótipo do indígena isolado, vestido de tanga, vivendo nas matas, longe dos benefícios que a tecnologia proporciona, como a conectividade, protagonismo na descoberta e a troca de informações. O livro é acompanhado por um DVD interativo que amplia o glossário de palavras de origem tupi, seja na fauna, flora, seja em capitais e cidades, com significado, fotos, histórico indígena e curiosidades. Ainda no menu, alguns textos complementam o aprendizado, como o da biografia de Padre Anchieta. Ele foi um dos primeiros a aprender o Tupi e o elevou à categoria de língua literária, abrindo canais de expressão artística na linguagem indígena.
Quem conhecer Curumim Poranga vai entender o prazer de se aprofundar no significado das palavras. Vai perceber a importância de recuperar o significado de palavras como Tietê. Se as ancestrais capivaras já voltaram ao rio, agora falta os paulistanos entenderem que pequenas palavras aparentemente sem muita história (como bitucas de cigarro) multiplicadas por milhões, não são apagadas de sua existência só pelo fato de voarem pela janela dos carros. Sua história contribui na formação de toneladas de lixo diário e esgoto que impedem o Tietê de respirar.
“Quem faz um poema abre uma janela / respira tu que estás numa cela / abafada / esse ar que entra por ela (...)"*. Como o Padre Anchieta percebeu, o legado tupi e de todos os povos indígenas nos ensinam como os mitos se relacionam com a vida cotidiana, como a língua é literatura e arte, e a arte literária é a própria vida. O que faço ao rio, faço ao meu irmão, o que faço ao meu irmão (seja ele da terra, do ar, das águas), faço a mim mesmo. O que faço com as minhas palavras, assim será a minha vida. O que faço com minha vida, assim serão minhas palavras.
As futuras gerações devem ter a chance de falar a palavra Tietê com fluência, conhecendo sua história, sua pureza, seu momento de poluição, sufocamento e quase morte, até o seu retorno que começa com a recuperação do seu real significado: Tietê, “rio verdadeiro”.
por Fabio Lisboa
http://www.contarhistorias.com.br/
* Maria Quintana - Trecho do poema "Emergência"
SERVIÇO
Lançamento
Título: Curumim Poranga
Autora: Neli Guiguer
Data: 24/4 (sabado)
Hora: 15h30
Local: Livraria Nobel do Shopping ABC Plaza de Santo André, Av. Pereira Barreto, 42
Ilustrador: Fernando Vilela
Coleção: O universo indígena - Série Raízes
Editora: Paulinas
Pág.: 32
Preço: R$ 24,50
Mais sobre “Índios na Cidade”:
A autora Neli Guiguer é colaboradora do projeto “Índios na Cidade” (http://www.opcaobrasil.org.br/) que ajuda índios, em especial os que vivem fora de suas aldeias, a não esquecerem suas raízes e recuperarem sua história. O perseverante coordenador do projeto, Marcos Júlio Aguiar, implantou em 2009, junto com comunidades indígenas e com o apoio do Ministério da Cultura, o primeiro Ponto de Cultura Indígena de Área Urbana do Brasil. Este Ponto de Cultura fica na região do Alto Tietê (Grande São Paulo), na cidade de Mogi das Cruzes e faz parte do projeto “Pontão de Cultura – Cultura e meio ambiente, tecendo o saber”.
Mais sobre o Rio Tietê:
A Rádio Eldorado foi o veículo de mídia que mais alertou, informou a população, pressionou governos e apoiou iniciativas desde a primeira reportagem da emissora, há 20 anos, sobre a situação do Rio Tietê. A Rádio continua “antenada” no Tietê contando com a colaboração de ouvintes e internautas participativos: http://com.limao.com.br/wikisite/riotiete/index.htm
Mais sobre a Língua Tupi:
http://www.girafamania.com.br/girafas/lingua_guarani.html
Mais sobre histórias, oralidade e literatura infantil:
http://www.contarhistorais.com.br/
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