Venha ver o por do
sol:
considerações sobre a
experiência do silêncio na formação artística
Por Regina Machado (1)
para Amina Shah
Então antigamente
a gente ia ver o por do sol. Quer dizer, não que as pessoas saíssem de casa com
essa intenção, tipo um programa.
O por do sol acontecia, e acontece, todos os dias, cada dia diferente do anterior.
Geralmente
coincidia com o fim do trabalho e nessa hora parada o por do sol estava ali,
acessível, no horizonte. É que havia horizonte. Se não da porta da minha casa,
com três passos se chegava num lugar onde seria possível descortinar o encontro
do céu com a terra, ou com a montanha, ou com o mar e acompanhar o sol sumindo,
sumindo. Todo dia.
Hoje, por trás dos
prédios - cortinas irremovíveis - das nossas cidades, o sol continua se pondo
cada dia de um jeito, num horizonte que ninguém consegue saber se existe,
quanto mais ver.
Criança de hoje
não conhece a expressão: “ter horizonte na vida”.
Porque não tem a
experiência do horizonte, não pode entender a expressão. Simples assim?
Será que uma
pessoa pode ser “alguém com horizonte na vida”, se não vive a experiência
possivelmente cotidiana, e não apenas turística, de contemplar no silêncio do
fim da tarde a nunca mesmice de um por de sol?
“Até que nem tanto
esotérico assim”...
Essa experiência
tem a ver com um certo ritmo, com uma cadência respiratória, com o alargamento
dos acreditados limites do existir, com o pouso numa quietude de onde pode
emergir o que ainda não é. Que poderá manifestar-se depois em turbulência,
ruptura, denúncia, dor, tanto faz. Falo do silencio não como alienação e sim
como condição de gestação do porvir.
“De onde vem o
baião, vem debaixo do barro do chão....”
Essa experiência
também remete a um certo estado da Arte, urdido nessa substancia de encontro do
dia com a noite, na hora preferida do Leonardo da Vinci.
Lembro:
Da primeira
leitura que fiz do conto O Espelho de Machado de Assis (2). O encontro com a
Arte da Palavra a desenrolar pouco a pouco uma ideia narrativa feita de
conjuntos de qualidades : dos espaços, dos personagens, dos ritmos dos
diálogos, do tempo do enunciado. Tudo isso entretecido no ritmo da respiração ,
da intenção de Machado de Assis.
O conto ia se
formando dentro de mim enquanto entrava em contato com as mais diversas
qualificações / pulsações da sequencia narrativa. Resumindo o assunto: numa
sala pequena, à noite, quatro homens de idade madura discutiam “questões de
alta transcendência” enquanto um quinto personagem permanecia calado. Depois de
muito tempo de falações metafísicas, solicitado a dar sua opinião, o homem
quieto conta um caso que aconteceu com ele quando era jovem.
Lembro da última
frase do texto do Machado de Assis:
“Quando os outros
voltaram a si, o narrador havia descido as escadas” (3)
O homem quieto, o
Jacobina, silenciou os argumentos, a discussão, o discurso de convencimento, a
altercação: a estória que contou foi seu silêncio. Ele se retirou para que o
conto falasse e não ele. O autor, Machado de Assis também silenciou o que ia
ser o desfecho que seu texto habilidosamente preparou .
Foi quando li essa
frase que o estado da Arte se instalou em mim. No silencio devastador que se
impôs, como um grande espaço de alargamento dos limites do meu existir, como
uma chave de compreensão, como o encontro do texto com algo dentro da minha
pessoa. Uma espécie de susto, uma revelação, um vislumbre. Produziu-se uma
experiência de significação. Equivalente, imagino, ao impacto que silenciou os
debatedores e os deixou “ no espelho”, ensimesmados no efeito que a história de
carne e osso produziu em cada um deles.
Ressonância que se
espelhou em mim, ao ler a última frase da forma artística criada pelo Machado
de Assis, grande mestre na arte de soprar silêncios no ar.
Esse silencio / ressonância / encontro / significação é fundamental na experiência de contato com a Arte. Quando a gente compreende alguma coisa que faz sentido, então a vida faz sentido, mesmo que a gente não saiba qual. A gente compreende, mesmo ás vezes sem entender, porque a obra conversa com um repertório interno de perguntas, percepções, conhecimentos, inquietações próprios a uma pessoa, particularmente.
Então de um lado, a “genialidade” da obra, a perícia do artista, a qualidade estética capaz de provocar algum estado na gente.
Esse silencio / ressonância / encontro / significação é fundamental na experiência de contato com a Arte. Quando a gente compreende alguma coisa que faz sentido, então a vida faz sentido, mesmo que a gente não saiba qual. A gente compreende, mesmo ás vezes sem entender, porque a obra conversa com um repertório interno de perguntas, percepções, conhecimentos, inquietações próprios a uma pessoa, particularmente.
Então de um lado, a “genialidade” da obra, a perícia do artista, a qualidade estética capaz de provocar algum estado na gente.
De outro lado, alguém que pode conversar com essa rede de qualidades e estar disponível para essa conversa. Conversa que pode produzir uma experiência de significação que é ao mesmo tempo experiência de pertencimento em que o encontro comigo mesmo, com o outro, com a vida, aponta para uma centelha que acende meus olhos. Que é também uma experiência de harmonia : por um instante a unidade da obra provoca uma ordenação caleidoscópica que acorda minha integridade humana, mesmo que ela esteja, digamos, soterrada. Experiência que se dá no silencio da contemplação, na disposição interna de receber, escutar, permitir o encontro da obra com minha história pessoal e a surpreendente aprendizagem que esse encontro me traz, no assombro, no mistério : produzindo em mim indagações e maravilhamentos a me assegurar que o sentido da vida vale a pena ser buscado.
Trata- se aqui de
um assunto: o ensino e aprendizagem da Arte.
Penso
particularmente na aprendizagem da literatura, oral ou escrita, tanto faz.
Penso de propósito na Arte da Palavra como parte desse conjunto de Formas
Artísticas que compõem os currículos escolares de modo em geral tão engavetado.
Parece que a literatura está sempre numa gaveta separada, ligada à área do ensino de Língua Portuguesa, difícil encontrá- la ao lado das Artes Visuais, Teatro, Musica, Dança.
Parece que a literatura está sempre numa gaveta separada, ligada à área do ensino de Língua Portuguesa, difícil encontrá- la ao lado das Artes Visuais, Teatro, Musica, Dança.
No entanto não se esqueçam: tudo o que eu disser daqui para frente inclui muito enfaticamente o ensino e aprendizagem da Arte da Palavra.
Há educadores artistas e alunos. Crianças, jovens e adultos. Formas, elementos e princípios de formatividade. Procedimentos, técnicas, materiais e critérios de avaliação. Processos e caminhos de aprender. Por onde começar?
Então na Arte
existe uma condição, um estado de contemplação do horizonte, o estado de conceber,
de arquitetar diversos desenhos, de sondar combinações de imagens...
Como podemos criar situações de contato(nosso) e dos alunos com esse silencio espaço de gestação em meio à balbúrdia do nosso tempo?
Como podemos criar situações de contato(nosso) e dos alunos com esse silencio espaço de gestação em meio à balbúrdia do nosso tempo?
Como propiciar o
contato e o alargamento desse universo repertório de imagens internas no
diálogo com a Arte?
Se o nosso objeto
de estudo é a Arte, o processo de aprender/ ensinar Arte não poderia ser
semelhante ao processo de criação/ recepção que se manifesta no domínio
artístico? Inspirado na experiência que temos, no que vivemos em contato com a
Arte?
Porque submeter o
processo de ensino e aprendizagem da Arte a modelos e esquemas construídos em
outros domínios, por exemplo o domínio da Pedagogia?
Se o artista
silencia o discurso da explicação, porque os educadores artistas não podem
fazer o mesmo? Já pensou se o Machado de Assis resolvesse explicar que o caso
do Jacobina foi tão bem contado que deixou os outros sem palavras?
Se ele inventou
sua última frase surpresa, não seria uma boa ideia para nós usarmos com os
alunos , a surpresa?
Lembro:
conto A sopa de Do pedra do Pedro Malasartes (4). Ensaio uma leitura “subversiva”.
conto A sopa de Do pedra do Pedro Malasartes (4). Ensaio uma leitura “subversiva”.
O Pedro Malasartes
pode ser, nessa leitura, o educador artista.
A velha - que
muitos avaliam como “avarenta, xexelenta, mão de vaca, lazarenta, não dá nada
pra ninguém” (5) pode ser um aluno, numa aula de arte.
Pergunto:
Porque a velha/ aluno entregaria seus tesouros, assim, sem mais nem menos, para fazer uma sopa/ um trabalho criador/ uma escuta/ um olhar para uma obra de arte / um assunto de aprender ?
Porque a velha/ aluno entregaria seus tesouros, assim, sem mais nem menos, para fazer uma sopa/ um trabalho criador/ uma escuta/ um olhar para uma obra de arte / um assunto de aprender ?
A avareza é nessa
metáfora um resguardo, um gesto cauteloso de abrir a cortina para ver o que
está acontecendo lá fora, do outro lado da janela. Como se a velha/ aluno
dissesse : no que isso me diz respeito?
Malasartes, o
educador artista, faz então um convite. Sem dizer nenhuma palavra. Um convite à
curiosidade, à percepção da velha / aluno : e se fosse possível existir uma
sopa de pedra?
“Santa
curiosidade! Tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia,
fruta divina” (6)
Será que essa
pedra que ele deposita na água fervendo não seria a possibilidade bruta / a
condição para o fazer, escutar, ver, pensar, realizar uma experiência de
contato com a arte?
Ele sabe o que
quer, mas não sabe qual a sopa que vai sair. Não traz uma sopa Knorr pronta
para oferecer, não traz todos os ingredientes. Mas ele sabe o que é uma sopa,
substância que já fez e tomou várias vezes. Que é, nesse caso, quente, feita no
fogo, dentro de um recipiente, é nutritiva, leva tempo para cozinhar. Ele tem a
experiência do assunto, o propósito desenhado, as questões, os vários tipos de
conhecimentos necessários.
Então , o que ele
faz ,( na expressão de uma aluna da pós Graduação, a Ana Carolina Pinheiro ) ,
é primeiro “convocar a sensibilidade” da velha/ aluno. Começando por convocar a
curiosidade para o que ainda não é, mas pode ser.
Em nome do que pode vir a ser a velha/ aluno começa a trazer seus tesouros: o que ela tem de precioso, guardado atrás da janela, dentro da sua casa. Sua cebola, tomate, toucinho, suas imagens internas, seu conhecimento de si mesma, dos outros e do mundo, seus medos, descobertas, confusões, sua vontade de aprender.
Fico achando que a sabedoria do Malasartes / educador artista está, antes de mais nada, nesse silencioso dispor de situações de aprendizagem como “ convocações da sensibilidade” da velha / aluno.Ele chama e autoriza esses tesouros de cada um de seus alunos. Assegura que todos esses interiores são bem-vindos. E aqui também o silêncio é muito importante. Às vezes se entende motivar como convencer e dá-lhe falação.
Em nome do que pode vir a ser a velha/ aluno começa a trazer seus tesouros: o que ela tem de precioso, guardado atrás da janela, dentro da sua casa. Sua cebola, tomate, toucinho, suas imagens internas, seu conhecimento de si mesma, dos outros e do mundo, seus medos, descobertas, confusões, sua vontade de aprender.
Fico achando que a sabedoria do Malasartes / educador artista está, antes de mais nada, nesse silencioso dispor de situações de aprendizagem como “ convocações da sensibilidade” da velha / aluno.Ele chama e autoriza esses tesouros de cada um de seus alunos. Assegura que todos esses interiores são bem-vindos. E aqui também o silêncio é muito importante. Às vezes se entende motivar como convencer e dá-lhe falação.
Querer , como numa
espécie de missão auto imposta, “levar o aluno a ...” nessa hora pode ser
fatal...
Penso que esse é o
primeiro passo: essa entrega para algo que faz sentido buscar- quero ver do que
se trata essa tal de sopa de pedra/ Arte.
Do que se trata
essa sopa de pedra/Arte?
Da concepção,
percepções e produção de qualidades configuradas em formas artísticas segundo
certos princípios e contextos particulares a cada época histórica e cultural.
Então é para essas qualidades que posso aprender a dirigir minha atenção.
Então é para essas qualidades que posso aprender a dirigir minha atenção.
Penso que se
trata, antes de qualquer outra coisa, de acordar a percepção. Perceber é distinguir
qualidades. Porque qualificar é entrar em contato com o que dá sentido,
essencialmente, a tudo que existe.
Já faz muito tempo
Rudolph Arnheim (7) disse que deveríamos, os educadores artistas, propor
desafios perceptivos para nossos alunos e não estímulos sensoriais, dos quais,
diga-se de passagem, o inferno aqui na terra está cheio....
Pedra dura,
áspera, lisa, pesada,no meio do caminho tinha uma pedra. No meio do meu caminho
tem uma pedra pequena, enorme, removível, intransponível, ridícula, que me faz
sentir raiva. De repente, pedra vira nuvem. Nossa, como foi que isso aconteceu?
Transformação. Quando a velha tomou a sopa, o que se transformou dentro dela, penso que isso é que é importante. Que gosto tem essa sopa?
Transformação. Quando a velha tomou a sopa, o que se transformou dentro dela, penso que isso é que é importante. Que gosto tem essa sopa?
Tudo é exercício
de percepção.Que começa no contato com o barro debaixo do chão. No silêncio
desse espaço.
Senão na
contemplação do por do sol, que aqui é quase apenas metáfora, ao menos na
disposição de situações equivalentes, onde o horizonte aponta para além dele, a
pedra aponta para o gosto que pode ter a sopa. Situação de observação de
possibilidades, na quietude dentro da gente”.
Da janela a velha
vê o Malasartes fazendo seu foguinho, colocando sobre ele sua panela com água
e...uma pedra. Não há pressa, há o estabelecimento de um contato, de uma
provocação.
Não há: “quero que
você aprenda isso e mais isso, conteúdos x, y e z.”
Há: a intenção que
carrega a pergunta silenciosa: “ e se você trouxesse x, y e z por algo que vale
a pena?”
A sopa só pode ser
feita se você trouxer sua percepção, sua imaginação, sua intuição, seu
pensamento, sua afetividade, sua pessoa.
O trabalho do
educador artista não seria orquestrar a forma dessa sopa? Para que afinal seja
sopa e não qualquer coisa, uma “criatividade” saída da “imaginação” do aluno,
que legal?
O que seria então
orquestrar?
Como educadores
artistas muitas vezes já tivemos a experiência desse poder milenar do que num
certo momento da história do ocidente passamos a chamar de Arte. O poder de
atravessar como uma flecha certeira os consumidos desejos de felicidade,
fazendo a gente ficar com vontade de acreditar que pode existir um ser humano
melhor, mais íntegro e mais corajoso. Mesmo o artista mais cético, porque se
daria ao trabalho de realizar uma obra, se não fosse no mínimo movido por um
desejo de contribuir para alguma mudança?
Como educadores
artistas, além dos planejamentos, objetivos e crenças pedagógicas, está, eu
penso, a lembrança de nossos próprios encontros, em silêncio, com a Arte que
nos transforma. Então, enraizados nessa boniteza, (era Paulo Freire quem falava
da boniteza de ensinar e aprender) (8) em vez de buscarmos mastros em nossa
função de “ensinar” talvez a gente possa se perguntar:
Como trazer para
nosso encontro com a Arte e com nossos alunos, esse horizonte , esse estado de
horizonte no por do sol, onde a terra se encontra com o céu, o dia cessa e a
noite ainda não germinou, algo se aquieta para dar lugar ao que vai chegar,
tempo de não ação, alguns diriam, de oração ?
Se... o que
captura tentacularmente a atenção das crianças, presas horas a fio na teia de
aranha dos joguinhos de computador, reduzidas que ficam a dedinhos e olhos
ágeis,
seria bom, quem sabe, a gente começar nosso trabalho diário com nossos alunos convocando ritmos, movimentos de corpo inteiro - canto , dança, música, cantigas- considerando essa ação como conteúdo da aula? Como conceber essa ação para que de fato ela seja artística e não ginástica?
seria bom, quem sabe, a gente começar nosso trabalho diário com nossos alunos convocando ritmos, movimentos de corpo inteiro - canto , dança, música, cantigas- considerando essa ação como conteúdo da aula? Como conceber essa ação para que de fato ela seja artística e não ginástica?
Como trabalhar as
qualidades das formas com cada grupo diferente de alunos?
Como escutar a
ilusória impossibilidade de uma criança quando ela diz que não sabe desenhar?
Como sugerir a
escuta de um bosque?
Como convidar à
contemplação/ observação de algo equivalente a um por de sol no horizonte?
Como encontrar
dentro da gente o profundo amor que o Machado de Assis tem pelo ser humano a
ponto de guiar sua mão e sua literatura para buscar sua alma por dentro da
farda do alferes?
O profundo amor
que guia a mão do Malasartes, mexendo a sopa de pedra e apostando no
derretimento da pedra dentro da velha avarenta.
Por Regina Machado
NOTAS
1 Regina Machado é professora livre-docente na Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, e doutora em Artes.
Publicou, entre outras obras, os livros Acordais: fundamentos
teórico-poéticos da arte de contar histórias (DCL, 2004) e O violino
cigano e outros contos de mulheres sábias (Cia. das Letras, 2004).
2 ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1994. v II.
3 Idem, p. 352.
4 Conto da tradição oral ibérica e brasileira. (N.E.).
5 Frase ritmada criada por Estevão Marques para sua narração
oral desse conto.
6 Machado de Assis, no conto citado, p. 347.
7 ARNHEIM, Rudolf. Intuição e intelecto na arte. São
Paulo, Martins Fontes, 1989.
8
FREIRE, Paulo: Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p.
38.
Texto original
(Universidade de Santa Cruz do Sul) que
a autora escolheu para inspirar reflexões que antecedem o ECOHVALE - 1o.
ENCONTRO DE CONTADORES DE HISTÓRIAS DO VALE DO PARAÍBA (13 a 16 de maio de 2015, cidade
de Lorena-SP)
Mais informações sobre o ECOHVALE.
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