Aqui você encontra a arte de contar histórias (storytelling)
entrelaçada à empatia, mediação de leitura, educação, brincar, sustentabilidade e cultura de paz.

Como começar uma história



Era uma vez um contador de histórias que não sabia como começar um conto. O seu maior medo era lhe deixarem no meio da fala, falando sozinho. Terminar era fácil, só por ponto final e pronto. Silêncio. Fim. E depois do fim, quem sabe um pedido: “conta outra”. Conto, claro, mas como começar uma nova história? Como começar sem que ninguém desista de ouvir antes do meio e arranje um meio de não chegar até o fim?

Esta é um das grandes lutas de quem se propõe a contar uma história. O título e os primeiros momentos de um conto podem definir se os leitores (ou ouvintes) vão deixar a narrativa (e o narrador) pra lá ou se interessar e chegar ao fim da história cheio de elucidações, indagações e lembranças.

Na luta entre um texto marcante e o seu leitor, revela o escritor argentino Júlio Cortasar, “o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute."[1]

Recebendo um Voto de Confiança

Os primeiros minutos de um longa metragem na TV são decisivos para o expectador se engajar na trama ou mudar de canal. Já o leitor de um romance pode passar dezenas (ou centenas) de páginas até se deixar conquistar de vez. Então ao ler um romance, o leitor agracia o autor com um voto de confiança, dando-lhe um tempo, contando com a sua habilidade de encadeamento de ideias para que se construa o interesse em sua obra.

No conto não há muito tempo. A paciência do leitor é menor. Na literatura infantil também não há fartura de paciência. Nas primeiras linhas e parágrafos o interesse e engajamento já devem ser criados senão o livro será fechado antes do tempo.

Todavia, se o livro for narrado em voz alta - seja por um familiar, professor ou profissional da palavra - a paciência do ouvinte tende a ser um pouco maior.

Analogamente ao voto que o romance recebe de seus leitores, o contador de histórias também recebe um voto de confiança de seus ouvintes. Ávidos por uma boa narrativa e por contato humano, serão condescendentes com pequenas delongas e não mandarão o contador fechar a boca tão rápido quanto fecham um livro infantil desinteressante.

Mas para “nocautear” os ouvintes logo no começo, deixando-os inebriados e à mercê do restante do conto, além da força das palavras inicias é preciso acariciar os seus ouvidos, deixando a competição de lado, fazendo da luta competitiva por atenção um jogo cooperativo de relações.

Criando uma Relação de Proximidade

Além de contar com a reação imediata do público para adequar a sua fala (e escuta) até que surja uma forte conexão narrador-ouvinte-trama, o contador tem a vantagem sobre o escritor de poder criar um clima propício à narrativa não apenas com palavras. Uma música, dança, imagem, objeto, expressão corporal e até mesmo o silêncio podem chamar a atenção para o começo do conto e para o que está por vir.

De todo modo, as primeiras frases que o narrador escolhe dizer podem ajudar e muito a criar coerência e interesse para a história que irá contar. Pode ser uma fórmula consagrada como “Era uma vez...” ou ‘No tempo em que os animais falavam...”. Uma palavra intrigante cujo contexto será dado antes da contação de histórias ou mediação de leitura começar. Uma curiosidade científica relacionada ao tema. Algum tipo de relação pessoal com a situação vivida pelos personagens ou com o livro.

Como vemos, não há um molde para definirmos como se começa bem. Cada história, cada vivência de quem a conta e cada referência de quem escuta é que vai delinear o melhor jeito de se começar.

Portanto, a história, e acima de tudo, a relação próxima do contador com a história e com a sua audiência é que deve conduzir a escolha das primeiras ações, expressões e/ou palavras que irão “entrar em cena”.

Para ilustrar como tornar real esta relação (de proximidade do contador não só com a história mas com o ouvinte/leitor), selecionamos seis aberturas de textos de autores que se aproximaram de fato do universo infantil ao escrever suas obras. Autores que criaram uma linguagem tão lúdica e criativa que torna-se instigante para leitores e ouvintes de qualquer idade.

Vejamos como estes autores conseguem criar, com poucas palavras iniciais, verdadeiras relações de proximidade conosco.

Refletir sobre como se começa um história é refletir sobre como estes mestres da palavra nos atraem irresistivelmente neste e naquele começo a querer descobrir mais e seguir em frente em suas (que, por algum motivo, logo se tornam nossas) narrativas.

Começando uma historia

A galinha que criava um ratinho

Lá em cima daquele morro tem uma casinha branca, com teto de sapê. É tão pequenina que nem dá pra ver daqui. Mas eu sei que tem, porque quando eu era pequena, assim que nem você, minha mãe me disse que tinha, e me contou a história que tinha acontecido nessa casa. Uma história que minha avó contou pra ela e eu vou contar pra você.

Ana Maria Machado[2]

O moço que não queria morrer

Um jovem viajante andava pelas estradas do mundo. Certa tarde, arranjou um lugar debaixo de uma árvore e sentou-se para descansar.
Um vulto apareceu, só Deus sabe de onde.
O moço puxou assunto com o recém-chegado. Conversa vai, conversa vem, descobriu que aquele vulto era a morte.

Ricardo Azevedo[3]

O sobrinho do mago
Capítulo Um: A porta errada

O que aqui se conta aconteceu há muitos anos, quando vovô ainda era menino. É uma história da maior importância, pois explica como começaram a idas e vindas entre o nosso mundo e a terra de Nárnia.
C. S. Lewis[4]

A troca e a tarefa

Eu tinha 9 anos quando a gente se encontrou. O Ciúme e eu. Era verão. Eu dormia no mesmo quarto que a minha irmã. A janela estava aberta.

Lygia Bojunga[5]
A escola de magia

Como tenho absoluta certeza de que meus jovens leitores se interessam muito por tudo o que diz respeito à escola (ou será que não?), quero contar agora como são as aulas do Reino dos Desejos.
Conforme contam muitas histórias e contos de fada, o Reino dos Desejos é uma terra onde “desejar pode servir para alguma coisa”. Aliás, esse reino não fica tão longe do nosso mundo do dia-a-dia quanto pensa a maioria das pessoas; mesmo assim, é bem difícil chegar até lá.
Michael Ende[6]

A fada que tinha ideias

Clara Luz era uma fada, de seus dez anos de idade, mais ou menos, que morava lá no céu, com a senhora fada sua mãe. Viveriam muito bem se não fosse uma coisa: Clara Luz não queria aprender a fazer mágicas pelo Livro das Fadas. Queria inventar suas próprias mágicas.

Fernanda Lopes de Almeida[7]

E assim o contador foi pondo um fim no seu medo e foi começando, tecendo relações, tornado suas as palavras alheias, trazendo pra perto os reinos encantados e, de vez em quando, inventando suas próprias poções mágicas de palavras.

Ora, falando em tecer conexões, por que você não conta agora quais os seus começos preferidos ao contar histórias e ler livros? Gostaria de ajudar os leitores a criarem relações próximas com algum de seus textos favoritos? Usa a magia literária de autores consagrados ou inventa suas próprias palavras de encantamento? Quer nos contar o começo de uma história que o seu avô lhe contava e que um dia vai contar aos seus netos?...

Era uma vez..?




[1] “la novela gana siempre por puntos, mientras que el cuento debe ganar por knockout.”- "La casilla de los Morelli" - Página 138; de Julio Cortázar, Julio Ortega - Tusquets, 1981.
[2] MACHADO, Ana Maria – Histórias à brasileira: A Moura Torta e outras – recontadas por Ana Maria Machado; ilustradas por Odilon Moraes – São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002, p. 63.
[3] AZEVEDO, Ricardo – Contos de enganar a morte / [narrativas populares, recolhidas e recontadas por] Ricardo Azevedo;[ilustrações Ricardo Azevedo], 1ª ed,, São Paulo: Ática, 2005, p. 35.
[4] LEWIS, C. S. (1898-1963) - As Crônicas de Nárnia / C. S. Lewis; ilustrações de Pauline Baynes; tradução Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel; revisão da tradução Silvana Vieira – São Paulo – Martins Fontes, 2005, p. 11.
[5] BOJNGA, Lygia – Tchau / Lygia Bojunga; ilustrações de miolo, Regina Yolanda; capa, Roger Mello – 15ed. – Rio de Janeiro: Agir, 2000, p. 51.
 [6] ENDE, Michael – A escola de Magia e outras histórias; tradução Vera Barkow, revisão da tradução e texto final Monica Stahel ; ilustrações Bernhard Oberdieck; – São Paulo: Martins fontes, 1997, p. 9.
[7] ALMEIDA, Fernanda Lopes de - A fada que tinha ideias / Fernanda Lopes de Almeida; ilustrações Edu – 28ed. – São Paulo: Ática, 2007, p. 7

1 comentários:

Anônimo disse...

Adorei este blog, pois iniciarei um projeto de leitura para meu tema de TCC e vai ser muito útil visita-lo. Continuem sempre assim com novidades! Atenciosamente, Rita.

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