Artista aborígene Donny
Woolagoodja fazendo a tarefa que herdou de seus antepassados:
retocar a pintura
na pedra de Wandjina em Kimberly, Austrália.
por Fabio
Lisboa
O
aborígene passa em frente à rocha colorida e reconhece os desenhos que contam
uma história de homens, mulheres, animais e a natureza em harmonia. O aborígene
se emociona não só pela beleza e poder da arte na pedra mas porque os desenhos
estão se desfazendo. Ele chora. É como se Wandjina, espírito da Nuvem e da
Chuva, fosse embora da convivência com os humanos e não mais moldasse com
beleza o meio ambiente. O homem começa a juntar barro, rocha ferrosa, carvão,
calcário e o sumo de certas plantas para fazer tintas naturais. Depois de prontas e dos rituais
apropriados, o artista contemporâneo começa a restaurar e refazer a obra de
seus ancestrais que, aliás, acreditam ter sido pintada originalmente pelas próprias
divindades no começo dos tempos, no Tempo dos Sonhos.
Diferente
da caverna de Chauvet, na França, soterrada por milhares de anos e descoberta somente
em 1994 com pinturas originais de até 30 mil anos, na Austrália, há centenas de
rochas que há centenas, talvez milhares de anos, vêm sendo pintadas e
repintadas pelos aborígenes até hoje (em especial até os anos 70 do século XX).
A
pintura feita à mão (ou mais recentemente, com o uso de instrumentos) nas
paredes dessas rochas australianas resistiu ao tempo não porque ficou fora do
alcance do homem e sim porque nunca deixou de ser revisitada por ele.
Ela
foi retocada por centenas de artistas e a sua essência se manteve. É certo que
suas cores, texturas e algumas de suas formas mudaram no decorrer das eras. Mas
o núcleo de cada um destes “era uma vez” ainda é igual ao que eram.
No
filme “A caverna dos sonhos esquecidos”[1], conta-se
do antropólogo que questiona o artista australiano:
-
Por que você escolhe repintar algo tão antigo, como faz isso?
O
artista responde algo como:
-
Não sou eu quem escolhe. As minhas mãos foram escolhidas. Mas não por mim. Elas
e eu somos apenas ferramenta do espírito.
É
ele, o espírito ancestral da humanidade quem pinta, quem conta esta história.
Mas que história é essa?
Sejam
elas pinturas rupestres ou contos da tradição oral, claro que o significado
último dessas obras de arte permanece oculto nos subterrâneos do espírito de
quem as criou, recriou ou presenciou. Todavia, esse espírito (histórias, lembranças,
arquétipos) ainda vive(m) em nós. Podemos comparar as semelhanças e diferenças
dos conceitos presentes nesse “espírito” das antigas obras com os conceitos
culturais e sociais e de nosso tempo presente.
Assim,
a partir de comparações e achados de vestígios artísticos e utilitários,
reconstruímos partes de um quebra-cabeça incompleto.
Visualizando
as peças que temos – amplificadas por décadas de pesquisa como os da socióloga
Riane Eisler[2]
- interpretamos as silhuetas desenhadas na pedra desvelando algumas histórias esperançosas.
Na maioria das histórias, as pinturas
rupestres nos contam de um tempo em que a humanidade se sentia parte da
natureza e não dono dela.
Tanto que as protuberâncias e contornos das
rochas fazem parte das formas dos bichos retratados. Tanto que esses bichos
eram considerados nossos irmãos. Tanto que das vezes em que formas humanas eram
registradas, em sua maioria mulheres, muitas delas eram desenhadas
em simbiose com animais – como uma mulher-búfalo-leão (Vallon Pont d’Arc
– Caverna de Chauvet, França), Wandjina, divindade com serpentes saindo da
cabeça (Kimberly, Australia), Labrys, a deusa mulher-borboleta (Creta, Grécia).
Os animais possuíam habilidades essenciais para
a sobrevivência (como correr, saltar, farejar, voar, caçar) superiores às
habilidades humanas. Talvez a borboleta as serpentes simbolizassem a
transformação e a mulher seria a divindade maior, a mãe-terra sempre pronta a
dar à luz, a criar vida. Só podemos
conjecturar o que estas imagens contavam para os que as criaram ou apreciaram-nas.
No entanto, pelas escolhas dos artistas podemos imaginar que estas sociedades matrísticas* valorizavam muito mais a beleza da interconexão do mundo natural, a colaboração
entre os seres vivos e entre os próprios humanos do que as sociedades patriarcais
seguintes cujos artistas escolheram retratar os atos de guerra e dominação.
Pintura rupestre na Caverna de Chauvet, França, pintada em torno de 30 mil anos atrás. |
Segundo
Riane Eisler, diferentemente da arte dos períodos posteriores, “até o período
neolítico não são retratadas imagens idealizadas da força armada, da crueldade
e do poder baseado na violência. Não há imagens de “nobres guerreiros” nem
cenas de batalhas. Tampouco se encontram sinais de “conquistadores armados”
arrastando cativos pelas correntes, nem de escravidão”[3] e nem
sequer foram achadas sepulturas luxuosas de “chefes”.
Ao
comparar a cultura dessas civilizações pré-históricas com a nossa atual, Humberto
Maturana destaca que “A cultura patriarcal ocidental à qual pertencemos se
caracteriza enquanto rede particular de conversações, pelas coordenações peculiares
de ações e emoções que constituem nossa convivência cotidiana de valorização da
guerra da luta, de aceitação das hierarquias, da autoridade do poder, de
valorização do crescimento e da procriação e de justificação racional do
controle do outro através da apropriação da verdade (...) que nos permite
dominar e subjugar a natureza.” [4]
“Como
seria viver centrado numa conversação de harmonia com a natureza e não na busca
de seu controle e dominação? Como seria viver na cooperação, no prazer da
convivência, ao contrário de na competição?”[5]
Nunca
saberemos exatamente como era esse modo de vida mas podemos imaginar que não havia
tanta competição entre homens e mulheres, entre chefes e empregados (pois estas
divisões sequer existiam), ou mesmo entre artistas.
Tanto
que estes últimos não são mais importantes do que suas obras. Eles não são mais
importantes do que os bichos os quais moldam com as mãos. Nas artes na pedra, nunca foi encontrado
um autorretrato ou qualquer tipo de identificação do artista. São apenas
contadores anônimos de uma história muito maior do que eles.
Várias
histórias da tradição oral chegam até nós como pinturas rupestres, trazendo uma
mensagem aprendida e refinada em milhares de anos de vida em paz com a
natureza.
Contadores
de histórias, era após era, continuam recontando um “era uma vez” após o outro,
retocando estas obras de arte dos contos com sua paleta de cores de palavras
pessoais, revitalizando as experiências e expressões, dando força aos
significados ancestrais e ainda, em alguns casos, trazendo à tona novos
sentidos aos sonhos quase esquecidos de nossos irmãos de outros tempos.
Numa
dessas histórias que sobreviveram ao desbotamento do tempo e foram sendo
retocadas com palavras contemporâneas ao longo das eras, dois homens competem
entre si pelo mesmo pedaço de terra e a ajuda para resolver a disputa vem de um
sábio indígena, um artista rupestre da palavra.
Na
próxima antessala de nossas escavações atuais, será trazida à luz esta
história:
Por Fabio
Lisboa
Referências
Foto:
Documentário
de Tim Mummery, em Kimberly, Austrália, retrata artista aborígene Donny
Woolagoodja da etnia Mowanjum fazendo a tarefa que herdou de seus
antepassados: retocar a pintura na pedra de Wandjina - espírito da nuvem e
da chuva que no princípio dos tempos molda as formas do meio ambiente e das
moradias das pessoas. A divindade é retratada com serpentes arco-íris na cabeça
representando a transformação e renovação da vida. O processo de repintar é ritualizado
e feito anualmente em determinada época do ano.
Livro:
EISLER,
Riane – O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro - São Paulo: Palas
Athena, 2007.
Filme (documentário):
A
Caverna dos Sonhos esquecidos (título original: Cave of Forgotten Dreams, 90',
de Werner Herzog, Canadá/ EUA/ Alemanha/ França/ Reino Unido, 2010).
Atualizado em 5-9-20 (matéria de 12-12-19)
Arte
rupestre na Indonésia é a mais antiga do mundo, dizem arqueólogos
Encontrada em caverna de difícil acesso ao
sul da ilha de Sulawesi, uma das principais da Indonésia, pinturas mostram o
que parece ser uma cena de caça – que o arqueólogo Adam Brumm acredita ser a
pintura rupestre artística mais antiga do mundo.No artigo publicado nesta quarta (11) na revista Nature, pesquisadores australianos e indonésios descrevem a descoberta que indica que a pintura teria sido produzida há 44 mil anos.
Na parede da caverna, havia representações de porcos, búfalos e humanos com focinhos e caudas de animais armados com cordas e lanças. Como todas as figuras parecem estar inseridas no mesmo contexto de uma caçada, a obra rupestre de 4,5 metros seria também a mais antiga narrativa contada de maneira visual e expressa através da arte.
Post Relacionado:
Contadores de histórias: Quem somos nós?
* Sociedades "matrísticas": Expressão cunhada por Humberto Maturana, considerando que se numa sociedade “patriarcal”
há a dominação do masculino associaríamos uma sociedade denominada “matriarcal” à
dominação do feminino quando diversos estudos (entre eles os de Riane Eisler)
comprovam que a sociedade era igualitária, por isso, o autor prefere usar o
neologismo “matrístico”.
[1]
Título original: Cave of Forgotten Dreams (90',
de Werner Herzog, Canadá/ EUA/ Alemanha/
França/ Reino Unido, 2010).
[2]
EISLER, Riane – O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro - São Paulo:
Palas Athena, 2007.
[3]
EISLER, Riane – O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro - São Paulo:
Palas Athena, 2007, p. 59.
[4]
EISLER, Riane – O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro - São Paulo:
Palas Athena, 2007, p. 14.
[5]
EISLER, Riane – O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro - São Paulo:
Palas Athena, 2007, p. 18.
0 comentários:
Postar um comentário