Aqui você encontra a arte de contar histórias (storytelling)
entrelaçada à empatia, mediação de leitura, educação, brincar, sustentabilidade e cultura de paz.

Fábula: O dia em que o gigante acordou

    


"A paz universal e duradoura poderá ser estabelecida apenas se baseada na justiça social. Se você deseja a paz cultive a justiça".
Norman Borlaug - Agricultor, ganhador do Prêmio Nobel da Paz 1970.

“Queremos paz e justiça e lutaremos por isso com garras e dentes.”

O lema das montanhas estava para mudar. Os animais estavam cansados dos mandos e desmandos dos leões-da-montanha. Alguns deles caçavam mais do que precisavam para comer. Estes poucos felídeos abusavam de seu poder, rompiam com a lei universal dos ciclos da natureza e com isso geravam desequilíbrio e insatisfação geral. Com isso, criaram uma má fama para a sua espécie e o seu modo de agir e ninguém queria mais saber daquela ditadura felina predatória e insustentável!

Porém, apesar da insatisfação, não havia um bicho que levantasse a voz para o modo de vida que viviam e que acabava com a vida nas montanhas. Até que um dia as cabras criaram coragem e baliram alto:

- Hei, leões-da-montanha, alguns de vocês estão abusando do seu poder, desperdiçando vidas, sendo desonestos com a mãe-natureza!

- Exigimos que mudem de atitude e as montanhas voltem a ser um bom lugar para se viver!

Os leões ouviram os balidos e ficaram surpresos com a ousadia das cabras. Alguns animais do alto da montanha que não faziam parte da cadeia alimentar leonina tomaram partido do mais forte, claro:

- Cabras baderneiras! Voltem para o pé da montanha antes que sejam comidas pelos leões!

Bem, alguns leões nem estavam com fome e as atacaram assim mesmo. Covardia! Muitas cabras ficaram com a lã cheia de sangue. Mas isso não as fez esmorecer: primeiro porque as cabras são cabeça-dura e não desistiriam de lutar por dias melhores nas montanhas.


Segundo, porque no outro dia, inspirados pela utopia, animais vindos de todos os lados começaram a se juntar e amplificar a voz do sonho caprino. Os bípedes foram os primeiros a aterrissar. Os quadrúpedes chegaram trotando logo depois, seguidos dos anfíbios e insetos. Os répteis foram os últimos a se arrastar até lá e, quando chegaram, com os ânimos de todos já estavam exaltados, puseram mais veneno nos debates.

Uns diziam que usariam chifres contra os opressores, outros garras, dentes, ferrões, picadas, patadas. Queriam logo acabar de uma vez por todos com a injustiça dessa laia de felídeos.

- Abaixo à ditadura! Fora gatunos!

- Temos direito à vida, não queremos ser comida! Chega de sangue!

- Vamos envenená-los! Fora leões!

O grito de alguns logo virou o clamor ensurdecedor da multidão de animais:

- Fora leões! Fora leões! Fora leões!

Era como se as montanhas ouvissem a manifestação e tremessem com o pulsar dos balidos, grunhidos, chiados e berros.

No meio da montanha, dentro de cavernas, um urso, que há meses hibernava, sentiu o solavanco de sua morada e se remexeu, sem abrir os olhos.

Os linces eriçaram os pelos e os coelhos se encolheram de medo. As cobras sibilaram de ódio e os sapos tremeram de pavor. Predadores e presas de todos os tipos se encararam.

Estava por um triz uma batalha de vida ou morte entre os próprios animais que se reuniam contra a opressão dos grandes felinos. E os pequenos animais, acostumados a serem caçados e encontrarem uma saída, pediram aos seus predadores:

- Se brigarmos, nos enfraqueceremos. Temos nossas diferenças mas façamos uma trégua, ao menos, até enfrentarmos os leões.

As cabras das montanhas, acostumadas a subir e descer, que há tempos sofriam nas garras dos leões, mas que insistiam em lutar por justiça, argumentaram:

- Sim, esperem. Se tirarmos o poder dos leões à força, estaremos agindo como eles, não?


- E tem mais, nem todos os leões são ditadores ou ladrões.

- Verdade, os leões nos ajudaram: antes vivíamos com fome e agora temos carniça – disseram os carniceiros.

- Isto foi bom para vocês, claro, mas nem vocês nem ninguém aguenta mais tanto desperdício de uns poucos leões – lembraram os herbívoros.

Entre prós e contras, as corujas argumentaram que, portanto, seria melhor usar o diálogo e apelar para o bom senso que até os leões deviam ter.

- Afinal, se continuarem menosprezando a natureza e os animais assim, logo, logo, os leões ficarão sem ter o que comer e sequer onde morar.

E leões-da-montanha não são nada sem a montanha e sem os outros moradores da montanha. Aos poucos, os ânimos envenenados foram se desintoxicando. Pois, no fundo, grandes e pequenos animais, presas e predadores, todos queriam coisas simples e parecidas: justiça num lugar preservado e bonito para se morar, comer, se divertir e dormir em paz. Afinal, o sonho caprino era o sonho de todos.

E assim foram todos subindo a montanha, acordados em falar pacificamente com os leões. O problema é que, quando todos aqueles animais foram passando na frente da caverna do urso que hibernava, acordaram o gigante.

E o gigante acordou mal-humorado. O urso não havia participado dos debates. Não estava desperto para o acordo de paz entre os diferentes.

Ouviu no seu sonho algo como:

- Fora leões! Direito! Sangue!

Saiu gritando o seu sonho, querendo tirar sangue de alguém. Direito, direito! Sem saber direito qual era o direito que queria. Mas os leões eram muito grandes pra ele tirar sangue. Então quis arrancar a pele dos coelhos pois não concordava com suas cores. Tentou comer as cabras com chifre e tudo.


Todavia, os coelhos fugiram e estas últimas, com suas cabeças calejadas, se defenderam mas não chifraram o urso. Tentaram ensinar ao gigante recém-desperto sobre justiça, democracia, paz e utopia.

E assim os animais continuaram a sua marcha, tentando decidir no caminho, qual seria o melhor caminho para realizar o sonho de todos das montanhas.

Agora, se o urso ouviu as cabras e se os leões ouviram a todos, essa é a história de uma jornada muito longa para ser contada num dia só.


O que podemos contar hoje é que aquelas montanhas ficaram conhecidas como o lugar onde um gigante acordou, um gigante que não era urso ou cabra, nem tampouco leão. O gigante que acordou era feito de milhões de seres vivos de todos os tipos que um dia fizeram um acordo pacífico e, em breve, mudariam o lema das montanhas:

“Queremos paz e justiça e lutaremos por isso com paz e justiça.”.

Por Fabio Lisboa
Manifestação em forma de Fábula

“Não há caminho para a paz. A paz é o caminho.”
Mahatma Gandhi
  

Referências
Contar Histórias no Facebook:

Fotos:
Manifestação: Mídia Ninja – (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação)
midianinja@gmail.com

Poema:
Das utopias – Mario Quintana, 1906-1994

Se as coisas são inatingíveis...ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

Quintana de bolso / Mário Quintana 1ª. Ed. Porto Alegre: LP&M, 1997 - aparece pela primeira vez no livro Espelho Mágico [1951].


0 comentários:

Postar um comentário