Por Fabio Lisboa
A
experiência da leitura de Rubem Alves pode nos despertar para experiências
cotidianas tanto menos indiferentes, desérticas, embotadas e solitárias, quanto
mais enriquecedoras, cheias de vida, emotivas e solidárias. O autor nos convida
a olhar o mundo com os olhos do outro. A sermos mais empáticos. Menos frios. A
enxergar a história do outro, mesmo que seja triste.
Se
o contador de histórias é a história que conta, e o outro também se conta (e se
encontra) aí nesta mesma narrativa, podemos ser então, ao narrar, ao mesmo
tempo, nós e o outro. E assim, neste espaço comum, com nossas emoções
compartilhadas e nossa capacidade de buscar finais felizes, talvez possamos tornar
a nossa história – e a do outro - menos triste.
Vistas
por este prisma, narrativas podem mesmo iluminar quem está na escuridão? Podem
ensinar algo a quem não quer nem saber? Acredito, como Rubem Alves, que as palavras
podem, sim, ser capazes de alegrar e trazer a primavera até para as areias e
gelo... E quando isso acontece...
É
assim que acontece a bondade
Por Rubem Alves
“Se
te perguntarem quem era essa que às areias e aos gelos quis ensinar a
primavera...”: é assim que Cecília Meireles inicia um de seus poemas. Ensinar
primavera às areias e aos gelos é coisa difícil. Gelos e areias nada sabem
sobre primaveras.., Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada
sabe sobre ela. O mundo seria melhor. Mas como ensiná-la?
Seria
possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo? Como, se ele não
ouve? E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a um cego? De que pedagogia
irei me valer para comunicar cores e formas a quem não vê? Há coisas que não
podem ser ensinadas. Há coisas que estão além das palavras. Os cientistas, os
filósofos e os professores são aqueles que se dedicam a ensinar as coisas que podem
ser ensinadas. Coisas que são ensinadas são aquelas que podem ser ditas. Sobre
a solidariedade muitas coisas podem ser ditas. Por exemplo: eu acho possível
desenvolver uma psicologia da solidariedade. Acho também possível desenvolver
uma sociologia da solidariedade. E, filosoficamente, uma ética da
solidariedade... Mas o saberes científicos e filosóficos da solidariedade não
ensinam a solidariedade, da mesma forma como a crítica da música e da pintura
não ensina às pessoas a beleza da música e da pintura. A solidariedade, como a
beleza, é inefável – está além das palavras.
Palavras
que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são
pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não ser engaiolado.
Ela não pode ser dita. A solidariedade pertence a uma classe de pássaros que só
existem em vôo. Engaiolados, esses pássaros morrem.
A
beleza é um desses pássaros. A beleza está além das palavras. Walt Whitman
tinha a consciência disso quando disse: “Sermões e lógicas jamais convencem. O
peso da noite cala bem mais fundo a alma...”. Ele conhecia os limites das suas
próprias palavras. E Fernando Pessoa sabia que aquilo que o poeta quer
comunicar não se encontra nas palavras que ele diz; antes, aparece nos espaços
vazios que se abrem entre elas, as palavras. Nesse espaço vazio se ouve uma
música. Mas essa música – de onde vem se ela se não foi o poeta que a tocou?
Não
é possível fazer uma prova sobre a beleza porque ela não é um conhecimento.
Tampouco é possível comandar a emoção diante da beleza. Somente atos podem ser
comandados. “Ordinário! Marche!”, o sargento ordena. Os recrutas obedecem.
Marcham. À ordem segue-se o ato. Mas sentimos que não podem ser comandados. Não
poso ordenar que alguém sinta a beleza que estou sentindo.
O
que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora: astronomia,
física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras.
Mas
há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram dentro do corpo.
Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera...
Sim,
sim! Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se encontram,
adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes – lembre-se da
história da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também
não brotar. Tudo depende... As sementes não brotarão se sobre elas houver uma
pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas...
De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam. Nos jardins
há pragas: tiriricas, picões...
Uma
dessas sementes é a “solidariedade”. A solidariedade não é uma entidade do
mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos.
Se ela fosse uma entidade do mundo de fora, poderia ser ensinada e produzida. A
solidariedade é uma entidade do mundo interior. Solidariedade nem se ensina,
nem se ordena, nem se produz. A solidariedade tem de brotar e crescer como uma
semente...
Veja
o ipê florido! Nasceu de uma semente. Depois de crescer não será necessária
nenhuma técnica, nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça. Angelus
Silesius, místico antigo, tem um verso que diz: “A rosa não tem porquês. Ela
floresce porque floresce”. O ipê floresce porque floresce. Seu florescer é um
simples transbordar natural da sua verdade.
A
solidariedade é como um ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de
mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: “Seja solidário!”. A
solidariedade acontece como um simples transbordamento: as fontes transbordam...
Da mesma forma como o poema é um transbordamento da alma do poeta e a canção,
um transbordamento da alma do compositor...
Já
disse que solidariedade é um sentimento. É esse o sentimento que nos torna mais
humanos. É um sentimento estranho, que perturba nossos próprios sentimentos. A
solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro.
Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo. Ela me pede
que eu compre um pacotinho de suas balas. Eu e a criança – dois corpos
separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz
imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável esse
sentimento imaginado se aloja junto aos meus próprios sentimentos. Na verdade,
desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no meu carro, com sentimentos leves e
alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não
são meus sentimentos. Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar.
Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim. Meu corpo
sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre.
Expande-se. Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele
mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa,
nem por mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido
pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de
amar o próximo como amamos a nós mesmos. A solidariedade é uma forma visível do
amor. Pela magia do sentimento de solidariedade, meu corpo passa a ser morada
de outro. É assim que acontece a bondade.
Mas
fica pendente a pergunta inicial: como ensinar primavera a gelos e areias? Para
isso as palavras do conhecimento são inúteis. Seria necessário fazer nascer
ipês no meio dos gelos e das areias! E eu só conheço uma palavra que tem esse
poder: a palavra dos poetas. Ensinar solidariedade? Que se façam ouvir as
palavras dos poetas nas igrejas, nas escolas, nas empresas, nas casas, na televisão,
nos bares, nas reuniões políticas, e, principalmente, na solidão...
“O
menino me olhou com olhos suplicantes.
E, de repente, eu era
um menino que olhava com olhos suplicantes...”.
Por Rubem Alves
Homenagem do Blog Contar Histórias à Rubem
Alves (1933-2014)
Referência:
Livro:
"As melhores crônicas de Rubem Alves", Campinas, SP, Editora Papirus,
2008, p. 10-13.
Mantenha-se conectado ao
Contar Histórias no Facebook:
0 comentários:
Postar um comentário