História real por Fabio Lisboa
Eu
e meu irmão menor fazíamos os preparativos para a travessia de um deserto quase
intransponível. Este deserto começava no quarto de costura de minha avó e se
estendia pelo corredor até a sala de estar.
Era
1983, eu tinha 8 anos e o Gu, meu irmão Augusto, 5. O nosso deserto tinha uns
10 metros no total. Todavia, na época, esses 10m adquiriam proporções colossais
pois circulávamos inúmeras vezes pelo trajeto. Além disso, criávamos obstáculos
e íamos vencendo a travessia, escalando morros de almofadas amontoadas no
corredor, adentrando uma caverna debaixo da mesa da sala e atravessando a ponte
do sofá de molas por cima de um caldaloso tapete escorregadio, perigosíssimo,
infestado de jacarés e areia movediça - não me pergunte como os jacarés
conseguiam nadar na areia movediça, só sei que ambos conseguiam estar lá,
juntos, na nossa imaginação e, sem dúvida, no tapete da sala da minha avó.
Algumas
brincadeiras e viagens fantásticas só são mesmo permitidas na casa dos avós. E
para uma brincadeira ser mesmo fantástica, além da permissão é preciso
concentração, imaginação, cooperação e, antes de tudo, preparação.
Naquele
dia, checamos os preparativos com muita atenção. Eu, que adorava mostrar que já
sabia escrever, fiz uma lista com quatro itens essenciais à viagem. O Gu não
sabia escrever. Ora, mas meus pais e avós sempre nos ensinaram a fazer o nosso
trabalho em equipe, um tentando entender o outro e cooperando com ele. Então eu
deixava meu irmão ainda iletrado fazer um rabisco em cada palavra assim que o
equipamento em questão estivesse “checado”:
1.
Cabana
desmontável - que era, de fato, feita desmontando o sofá do quarto, deixando-o
pelado sem suas grandes almofadas. Rabisco do Gu: “Checado!”
2.
Botas
de plástico – que, na real, eram botas anti-chuva e não teriam utilidade
nenhuma no deserto não fossem tão parecidas com botas do uniforme de heróis o
que as faziam itens indispensáveis de vestimenta em qualquer uma de nossas
aventuras . Rabisco do Gu: “Checado!”
3.
Lanterna
– que era uma lanterna mesmo, para ser usada na cabana, à noite, ou na caverna.
Rabisco do Gu: “Checado!”
4.
Cantil
com água – que, na verdade, eram copos de água. Rabisco do Gu: “Checado!”
Acontece
que este quarto item acabaria sendo um equipamento perigoso para a árdua jornada
que enfrentaríamos. Este objeto - e o mau uso dele - quebraria o encanto de
nosso imaginário infantil e espatifaria a nossa confiança mútua. Na época raramente
comprava-se água engarrafada, então os nossos cantis eram aqueles copos do tipo
“americano”, de vidro.
Deixamos
os dois copos-cantis no móvel do quarto de costura. Era ali onde, em meio a
dunas quase inalcançáveis, passaríamos a noite (fechando a janela), nos
protegendo do frio estremo da noite desértica em nossa cabana de almofadas.
O
dia no deserto voou, eu completei os desafios e cheguei antes ao acampamento
base, esbaforido, com sede. Virei o meu copo, bebendo toda a minha água. Meu
irmão, mais precavido, bebeu apenas um pouco da água de seu cantil, afinal,
ainda iríamos passar a noite lá e no dia seguinte, sair para mais uma caminhada
com o sol escaldante.
Fechamos
a janela do quarto, e num segundo era noite, entramos na cabana e fingimos
dormir. Foi quando meu irmão advertiu “Feche a porta da cabana, faz muito frio
no deserto!”. Foi quando eu devia ter percebido o quanto ele estava concentrado
no jogo simbólico, vivendo com emoção e acreditando em tudo aquilo que íamos
inventando! Mas não percebi. Eu achava que entendia o mundo das crianças
menores enxergando o mundo com os meus olhos de criança mais velha,
distinguindo vividamente o real do inventado.
Poucos
minutos depois, abri novamente a janela para o dia chegar e a brincadeira
continuar. O aventureiro, ainda dentro da cabana, chiou: - Não deu tempo de a
noite acabar!
-
No deserto o sol nasce mais cedo! Vamos!
-
É mesmo?
-
Sim! Vamos, Gu! Temos que atravessar o deserto!
Enquanto
o acampante desmontava a cabana, fiquei com sede. Tomei a água que restava no
copo do Augusto. Nem pensei em explicar-lhe que devíamos ir pegar água na fonte
– que ficava no filtro de água na cozinha – e que assim, não morreríamos de
sede no meio do deserto.
Nem
pensei em dizer que tomando a sua água eu não havia desertado da nossa equipe,
abandonando meu parceiro sem nada no meio do nada. Afinal, aquilo era só uma
brincadeira, éramos irmãos e podíamos reabastecer os nossos copos a qualquer
momento com a nossa avó.
Meu
irmãozinho de 5 anos entenderia.
Só
que não entendeu.
O viajante
se levantou, foi procurar o seu cantil para o café da manhã e nada. Ele não
disse nada. Só olhou para o copo vazio com cara de espanto. Depois com olhar de
frustração e tristeza. Depois olhou pra mim. Dei um sorriso amarelo: - Eu
tomei!
O
olhar triste virou raivoso. Vi que era o momento certo de explicar que,
enquanto a avó estava cozinhando, podíamos ir até ela e pedir um copo novo
cheinho de água.
Só
que não houve tempo. Nem conversa. O copo voou na minha direção. Ele jogou sem
pensar. O problema é que o arremesso impensado foi bem em direção ao meu rosto.
Tentei abaixar mas só consegui parcialmente, o vidro me atingiu na cabeça.
Um
segundo depois eu estava chorando. Dois segundos depois meu irmão chorava ainda
mais, começando a entender o que fez. Pus a mão onde doía e minha mão ficou
ensopada. De sangue. Fiquei zonzo. Ele foi correndo chamar a minha avó.
Quando
saiu, ela já entrava no quarto, vinda da cozinha com o pano de prato na mão e
já com ele mesmo cobriu a minha cabeça. Enxugou o sangue e examinou o corte.
Não era largo, nem profundo. Me acalmou. Não desmaiei. Lembro-me de tudo. Ela
lavou a ferida e estancou o sangramento. Nem precisei levar pontos.
Só
fiquei com um galo que, em alguns dias (ou semanas), saiu da minha cabeça.
Porém,
desde essa aventura no deserto, três coisas nunca mais saíram da minha cabeça:
A
primeira: É muito bom brincar e - até quando a gente se machuca - sempre
aprendemos algo.
A
segunda: É muito bom tanto pedir desculpas com verdade quanto ouvir um pedido
de desculpas sincero. Perdoar é um alívio.
A
terceira: Brincadeira não é só um passatempo, para a criança, brincadeira é
coisa séria!
Meu
irmão logo aprendeu a distinguir a fantasia da realidade e nunca mais me
arremessou objetos perigosos. Continuamos brincando por muitos anos, nos
machucando de vez em quando, mas sempre cicatrizando as feridas, perdoando.
Hoje
eu queria ver a minha sobrinha brincando na casa dos avós, desmantelando sofás
antes intocáveis para montar cabanas e atravessar desertos intransponíveis...
Uma História
real sobre brincar, machucar, perdoar -
vivida e contada
por Fabio Lisboa
Referências
Imagem
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5 comentários:
Nossa memória é fabulosa e nos permite sentir e causar sensações incríveis como a que acabo de viver.
Consegui participar da sua "infância no deserto" e isso me fez recordar das brincadeiras que vivenciei em família e no jardim da infância - elas também tinham lá sua dose de periculosidade, rsrsrs.
Adorei!
Puxa Sandra, que bacana saber que as suas doces (e-ou travessas) lembranças tb foram reavivadas durante a sua entrada neste território lúdico! Fiquei curioso de saber alguma "pecurialidade" de suas aventuras, quem sabe um dia vc tb nos conta...
Lindo!
Pude viajar por esse deserto, sentir a garganta seca de sede...grata por essa história que agora levo comigo!
Obrigado pelo comentário, Renata, e eu louco pra levar o seu texto da revista Crescer nas minhas bagagens que já até reservei com o meu jornaleiro :) ! Quando quiser contar algo por aqui será uma honra ter você como autora convidada, bjs!
Sensacional !!!
Viajei pelo deserto, vi a noite, senti frio e fome, senti o desespero de ver o copo voando.
Pude ver a vó com o pano de prato e também o arrependimento do Gu.
Aí, que delícia de história bem contada.
Parabéns !!!
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