Recontada por Fabio
Lisboa
Desde
criança, Gotmai era a mais magra das crianças e por isso era chamada de Kisa
Gomati (Gotami Magricela). Kisa Gotami era pobre, órfão e sofria com as
humilhações, no entanto, mantinha o seu coração puro e livre de ódio.
Ela,
inocentemente, sem saber, ajudou um rico e avarento mercador. E este a fez
casar-se com o seu filho. Casada, Gotami achou que iria melhorar de vida mas aí
é que as coisas pioraram. Apesar de não sofrer mais dificuldades financeiras, o
marido a tratava como escrava e a humilhava ainda mais. Seu corpo magro até
aguentava o sofrimento mas a sua alma se entristecia cada vez mais com a
violência e injustiça do mundo.
Quando
o seu filho veio ao mundo, finalmente, o mundo de Kisa Gotami mudou
completamente.
Ela amava aquele bebê mais do que tudo em sua vida! E o amor
infantil e inocente que ela recebia em troca era um tesouro inestimável!
A
mãe ajudou o filho a dar os primeiros passos e logo o menino começou a andar
sozinho. Mas o marido continuava exigente e intransigente e naquele dia exigiu
tantas coisas que o filho acabou ficando sozinho. O menino ficou andando pelo
quintal, até cair, dando um grito. E caído ficou choramingando.
A
mãe chegou como um raio em socorro ao filho, pegou o menino nos braços e viu
uma cobra saindo de perto da criança. O menino foi ficando roxo, chorando cada
vez mais baixinho, se acalmou nos braços da mãe, até que o choro parou e ele se
foi, empalidecido.
Kisa
Gotami saiu correndo com o filho no colo, em desespero, pedindo por ajuda:
-
Por favor, me dê um remédio para curar o meu filhinho!
Ela
tocava nas casas e era humilhada:
As
pessoas, carrancudas, batiam a porta em sua cara. Depois riam e comentavam:
-
Que mulher louca! A criança está morta!
A
mulher ouvia mas não queria acreditar. Por que você não se mexe, filho? Eu
quero você de novo andando e brincando – pensava ela.
“– Por favor, me dê um remédio para o meu
filho, ele não se mexe!”
Um
homem sensato se compadeceu da dor da mãe que não queria aceitar a morte do
filho e disse:
-
Eu não tenho esse remédio que você procura mas eu posso indicar quem o tem.
-E eu te
suplico: me diga quem é!
-Você
precisa falar com Sakyamuni, o Buda.
A mulher
à beira da loucura foi ver o Iluminado e exclamou, chorando:
- Senhor,
meu filho estava brincando entre as flores e tropeçou numa serpente que se
enroscou no seu braço. Depois ficou pálido e silencioso. Não posso aceitar que
ele deixe o meu colo assim. Senhor, meu mestre, dá-me um remédio que cure o meu
filho.
O
Iluminado respondeu:
-Sim
irmãzinha, há uma coisa que pode curar teu filho e a ti, se puderes
consegui-la, porque os que consultam os médicos tomam o que lhes é receitado.
Procura uma simples semente de mostarda preta, porém só deves recebê-la de uma
casa onde nunca tenha entrado a morte.
Aflita, a
magra Gotami foi de casa em casa pedindo o grão de mostarda. As pessoas se
compadeciam dela e lhe davam a semente, porém, quando ela perguntava se já
tinha morrido alguém naquela casa, lhe respondiam:
-Ah! São muitos
as pessoas queridas que já morreram nesta família. Não nos lembre da nossa dor.
Agradecida,
ela lhes devolvia a semente de mostarda que não serviria para preparar o
remédio e dirigia-se a outros que diziam a ela:
-Aqui
está a semente, porém já morreu nosso empregado.
-Aqui
está a semente, porém o semeador morreu entre a estação chuvosa e a colheita.
- Pode
levar esta semente, mas saiba a morte levou a nossa filha antes da hora.
E assim
foi, o dia todo procurou mas não encontrou nenhuma casa onde a morte já não
tivesse passado. Nenhuma semente serviria para trazer o seu filho de volta. No
começo, achou que ninguém entendia a sua dor. No decorrer do dia, percebeu que
a dor da morte não era só sua. Muitos sofreram com ela e ela sofreu ao ouvir
histórias de pessoas que se foram, avôs, avós, pais, mães, filhos, filhas,
irmãos, irmãs, empregados, amigos, parentes e até animais queridos.
Ela
entendeu a mensagem do Iluminado. Enterrou sozinha o seu filho, mas sabia que
era como se estivesse ao lado de muitos conhecidos e desconhecidos, dando o
último adeus ao menino.
Kisa
Gotami voltou até Buda, o Desperto, que lhe perguntou:
-
Encontrou a semente?
- Não,
Mestre.
- Mas procurando
o que não poderia encontrar, achaste um amargo bálsamo... Enterraste o teu
filho?
- Sim. Sobre
o meu seio, o meu menininho dormiu hoje o sono da morte. E eu só pude chorar
sozinha... De manhã estava sozinha, no fim da tarde, ainda sozinha, percebi que
havia uma multidão comigo.
- Agora
sabes que, cedo ou tarde, todo mundo chora uma dor semelhante à tua.
- Por
que, meu Senhor?
- Nenhum
nascido pode evitar a morte. Assim como os frutos maduros caem da árvore, assim
os mortais estão expostos à morte desde que nascem. A vida corporal do homem
acaba partindo-se como a vasilha de barro do oleiro. Jovens e adultos, ignorantes
e sábios, todos estão sujeitos à morte. Porém, o sábio que conhece a Lei não se
perturba, porque nem pelo pranto nem pelo desânimo obtém a paz, mas pelo
contrário, isso tudo aviva as dores e os sofrimentos do corpo. A morte não faz
caso de lamentações. Embora viva dez ou cem anos, acaba o homem por separar-se
de seus amados ao sair deste mundo. Quem deseja a paz da alma, deve arrancar de
sua ferida a flecha do desgosto, da queixa, da lamentação. Feliz será aquele
que consegue vencer a dor.
História sagrada do budismo recontada por Fabio Lisboa
Homenagem aos familiares das 235 pessoas vítimas do
incêndio na boate kiss em Santa Maria, RS, em 27/01/2012, que um dia vençam a sua
dor.
Referências
Ilustração:
Sandro Neto Ribeiro
Textos
baseados em:
Sutra
Semente de Mostarda
Colaboração
de Charles Chigusa
Richard Winter,
Cambridge Buddhist Centre
Based on C. Rhys
Davids and K. Norman: Poems of Early Buddhist Nuns, Pali Text Society, pp.88-9,
a translation of the Therigatha from the Pali Canon, and the commentary by
Dhammapala (6th century AD) who claimed he was following traditional
interpretations.
2 comentários:
Homenagem e bálsamo.
LINDA HISTÓRIA - ME EMOCIONOU MUITO.
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